31 août 2005

I see dead cats...

Hoje vi o quarto gato morto nas imediações onde trabalho. Era um gato preto e branco, na divisa que separa uma das três pistas da perimetral. Atropelado? Difícil imaginar um gato sendo atropelado. Mas os motoristas já adquiriram há muito tempo essa habilidade. Não satisfeitos em atropelar humanos, cachorros e cavalos, eles atropelam gatos. Mas os outros que vi - todos no mês de agosto, se bem me lembro - não aparentavam ter sinais de atropelamento. Primeiro, foram dois gatos, meio gordos. Um ruivo, o outro branco. Vistos mortos na mesma manhã. Depois, foi um gato preto, numas daquelas desabaladas tempestades, em cima da grama em frente ao Jardim Botânico, nas proximidades da encruzilhada dos despachos. No dia seguinte, foi esse, preto e branco, que uma senhora caridosa fez a gentileza de retirar do acostamento, num modesto funeral. Quatro gatos encontrados mortos de manhã. Uma chacina. Um gatocídio. Me lembrei dos quadrinhos dos ratinhos judeus dominados pelos gatos nazistas no premiado "Maus". Talvez fosse uma tardia vingança. Os ratinhos tomaram, enfim, o poder. Mas não. Isso é coisa dos humanos. Querendo varrer da face da terra tudo o que os importuna: árvores, cachorros, gatos, índios, pobres, homossexuais, negros, estrangeiros. Tudo que atravanque o caminho deles. É assim que os homens cometem seus pequenos holocaustos todos os dias. Mas voltemos aos gatos [nada contra os cachorros. Eles são simpáticos, bonitos e inteligentes. O único defeito deles é que deixam-se levar facilmente pelos humanos. Gatos, não. São eles que nos trapaceiam]. Coincidência ou não, na noite do dia do gato preto morto, o que vi na minha rua, a caminho de casa, foi um gato preto. Vivo. E mais outros gatos, todos vivos. Desde então, toda vez que me deparo com gatos mortos na rua, eu os procuro vivos, à noite. Como se eles fossem mesmo capazes de trapacear até a morte. E viver suas sete, entre muitas vidas.

30 août 2005

nine million rainy days



Dias de chuva interminável e eu penso que não precisamos ver esses dias assim, tão cinzentos. De manhã, eu via a cidade passando pela janela do metrô, o céu escuro, mas as coisas brilhavam e as cores eram mais vivas, como se tivessem sido lavadas. Tudo lá fora parecia limpo, o que é uma grande mentira. Mas finjamos um pouco, afinal aqui é o meu mundo de ficção [o mais verdadeiro que eu conheço]. Cedo demais para sonhar, mas as mãos eram reais, o rosto real e os olhos e o sorriso que falam, brilhando, bem diante de mim. Nunca vi isso antes. Um silêncio que brilha, debaixo do guarda-chuva. O pianinho de Belle & Sebastian fazendo a trilha sonora que não sai da cabeça. Qual era mesmo o significado da expressão "chovendo cães e gatos"? Nota-se que fiquei desorientado.

17 août 2005

Spielberg e os brincos de argola

Deve haver uma explicação psicológica para que alguém se esconda por trás de certos artifícios. E olha que tem gente que abusa. Na minha frente no ônibus de manhã: uma loira falsa, de cabelos falsamente lisos, pele artificialmente bronzeada e fazendo aqueles malabarismos com o cabelo numa súplica desesperada por atenção. "Vocês precisam me ver, olhem como sou maravilhosa, que cabelos, que pele!". Olhei para a janela do ônibus, pensando: "Só falta um item, aquele mesmo, os abomináveis e indefectíveis brincos de argola". Me contive por um instante, me recriminando: " Não seja tão preconceituoso, ela não usa brincos de argola, não julgue as pessoas pela aparência". Então virei-me novamente para me certificar. E eles estavam ali, os brincos de argola, imensos, redundantes, ameaçadores, fulminando qualquer possibildade de perdão pelas atrocidades humanas. A ânsia de vômito da véspera, após a sessão de "Guerra dos Mundos", veio à tona. A previsibilidade sempre me surpreende.

09 août 2005

Leis da Física

Hoje mesmo eu pensava [ou era a idéia de um pensamento, aqueles lampejos...] - olhando pela janela do ônibus a cidade pegajosa de umidade e frio - que não escrevo aqui há um bom tempo. Mas não que eu não tenha escrito, porque já escrevi um bocado de cartas por esses dias. Está quase tudo nelas, aos fragmentos. Tenho cartas que não enviei, tem cartas em envelopes, tem cartas incompletas, cartas fora do baralho, cartas na manga. Confesso que estou mergulhado em completo silêncio. Meus pensamentos são folhas de papel em branco. Uma paralisia que, à primeira vista, até poderia se assemelhar a alguma espécie de transe ou contemplação. Mas não é nada disso. Essa paralisia silenciosa é universalmente conhecida como inércia.