30 décembre 2005

musas parte 1











"O mundo todo envolvido com o ano novo e você aí, venerando as suas musas...". Verdade, verdade. Sou o ateu mais politeísta que eu conheço...

derradeiras páginas de 2005



Instruções Para Matar Duília

Comprar um revólver 38, ir para o sítio clandestinamente no fim de semana, exercitar tiro ao alvo, atirar numa boneca como se atirasse em Duília; ter cuidado para a mão não tremer, fazer pontaria, mirar bem o coração de Duília, pedir a Deus:
- Senhor, evitai que eu caia nas tentações de Duília, amém.
Atirar uma vez e duas e três e quatro e cem mil vezes no coração de uma boneca de pano que vai representar Duília, puxar o gatilho, matar Duília e sair cantando e dançando, com a mão cheirando a pólvora, procurar o delegado e se entregar dizendo:
- Acabo de matar Duília com um tiro no coração.
(Os jornais dirão: milionário paulista mata Duília, a que dava nos homens vontade de cantar.)
Treinar tiro ao alvo todo fim de semana, comprar bonecas louras e de olhos verdes como Duília, ter certeza de que não vai errar quando fizer pontaria no coração de Duília, rezar uma Ave Maria pela alma de Duília, pedir a Deus que perdoe os pecados de Duília, coitada, Duília ficou órfã aos 7 anos, viu um pistoleiro armado chegar diante do pai e atirar, era tão pequena, coitadinha, até hoje, aos 23 anos, quando a brisa do Brasil beija e balança a cabeleira fulva de Duília, ela diz:
- É a mão de meu pai me fazendo um cafuné...
(Os jornais dirão: Duília deitava-se no divã de um analista toda tarde de quinta-feira.)
Ter cuidado para não deixar Duília rir; quando Duília ri, senhoras e senhores, alegra o mundo, acaba com os humilhados e ofendidos, e todos cantam e dançam em volta de Duília e anunciam a boa nova:
O Brasil tem jeito! O Brasil tem jeito!
Contar uma história triste a Duília, para Duília chorar (em vez de rir), mas ter cuidado, quando Duília fica triste, ah, a beleza de Duília cresce, e dá na gente uma vontade de ser bom, fazendeiro fica querendo chamar os sem-terra e decretar:
Seja feita a vontade de Duília, reforma agrária já!
Vendo Duília rir, banquei

23 décembre 2005

a menina triste da parada do ônibus que ninguém vê

Vou contar para vocês uma história. Uma história sem final. Até porque o final me parece tão óbvio. A história de uma menina que não é lá muito bonita. Na verdade, ela não tem atrativo algum. Há quem a chame de cult ou indie. Isso é por causa dos óculos que usa, além das camisetas de bandas e seus inseparáveis All Star. Ela freqüenta lugares bacanas. Há vezes em que se vê rodeada de gente, indo parar em festas alheias e até arrisca dançar uns Beatles ou mesmo um Cure arranhado que não saía do lugar. Mas sente-se sozinha. Ela ama o cinema, é viciada em livros. O que a leva a ler vários ao mesmo tempo, abandonando muitos pelo caminho feito amantes. Ela acredita que o único lugar no mundo em que sente um pouco de felicidade é a sala escura do cinema, quando a tela se ilumina à sua frente e ninguém a vê. Parece-lhe um mundo imenso, vasto mundo onde tudo vira arte e poesia, mesmo a dor, o sofrimento, o desamor. Hoje ela estava particularmente triste. Assistiu a um filme sozinha, como quase sempre faz. Depois, na parada do ônibus que demorou meia hora para chegar, ela aproveita o tempo a observar pessoas. A faixa de segurança do Iguatemi é a passarela. Nela, desfilam todas aquelas pessoas que parecem ter saído de um comercial. Cheirosas, limpas, atraentes, bem sucedidas, desejadas. Era isso o que ela buscou a vida inteira: ser desejada. Não havia um só olhar na multidão ao redor que buscasse o seu. Seus olhos eram como pássaros desnorteados na noite, sem ter onde pousar. Nas festas, ela pode dançar a noite inteira, mas ninguém a procura. Hoje, no cinema, sentou-se uma mulher ao seu lado. Então ela pôs-se a fantasiar que aquela mulher sentara-se ali de propósito, mexendo os cabelos, e que, a qualquer momento, pegaria na sua mão. Nada disso aconteceu. Ao final da sessão, a mulher permaneceu durante os créditos e, ao se levantar, deixou um papel dentro do porta-copos. Deve ser o número do telefone, pensou, uma cena tão... cinematográfica. Ela respirou fundo, esperou que a mulher se afastasse e olhou disfarçadamente para o papel. Era apenas o ingresso do cinema. Nenhum recado sequer. Embarcou no ônibus com poucos passageiros. Uma menina de cabelos vermelhos à sua frente [ela tem fetiche por cabelos vermelhos] olha fotos num álbum. Um casal de namorados entrelaça os braços. Ela retorna aos contos do Drummond. Não o Carlos. O Roberto. Ela tem tanto sono porque passa as madrugadas ouvindo música e escrevendo. À espera de um telefonema, mesmo sabendo que o telefone, maldito telefone, não irá tocar. Ela chega atrasada ao trabalho porque gosta de ouvir música quando acorda. Hora de enfrentar o mundo outra vez, menina. E a história se repete como um filme. Mas sem espectador.

stressé, moi?









Toda unanimidade é burra. E os críticos são umas bestas. Li no jornal que o Belle & Sebastian já não causava a mesma sensação, que estava repetindo as mesmas fórmulas e tralalá. Então, por que será que, ouvindo Dear Catastrophe Waitress, que é de 2003, eles parecem melhores que antes? Até a capa é a mais bela de todas. Também, como não haveria de ser, com uma menina de cabelos curtos usando uma camiseta com dizeres em francês? É um dos CDs mais bonitos que já ouvi e o Belle & Sebastian continua me cativando. Repetitivo mesmo só o discurso chato da crítica.

13 décembre 2005

ovelhas negras mofadas

Ela sairia às 19h da biblioteca. Fiz as contas e poderia assistir à sessão das cinco. Havia um bocado de tempo livre antes do filme, o suficiente para entrar no sebo e escolher um livro. Ela gostava de Caio, lembrei, depois de procurar inutilmente por Mansfield, Sylvia, Salinger, Woolf, Ana C. [imagino que louco venderia uma dessas preciosidades]. Então o vendedor tira da prateleira empoeirada, um livro velho e amarelado, que deve ter passado por tantas mãos e olhos, deitado em várias camas. Era "Ovelhas Negras", surrado, primeira edição, 15 reais. O vendedor me sugere uma nova edição, limpinha, daquela série de relançamentos, pelo dobro do preço. Parece que os valores não correspondem, pensei. Não pagaria 15 reais por um livro novo... Foi assim que levei o Caio, por acidente. Mais tarde ela me confessa que, no meu lugar, não daria aquele livro de jeito nenhum. Naquele dia ela havia restaurado um "Morangos Mofados". Deve fazer algum sentido.

10 décembre 2005

Dezembro

Dezembro começou. E o que eu havia pensado sobre ele se foi com a folhinha do mês passado arrancada do calendário. Fui arrancando os novembros espalhados pela casa como pétalas secas. Acredito na maldição do calendário. Que se você não virar as folhinhas ou arrancá-las a tempo, ficará preso ao passado.
Do dia 1º de dezembro, lembro que “Unravel” da Björk surgiu na minha cabeça de manhã, mesmo depois de ouvir ininterruptamente os cinco CDs dos Cardigans espalhados pelo quarto. Lembro que desejava ter escrito sobre o mês de dezembro e ia sugerir que você também escrevesse. Imagino que deve haver dezenas de músicas, contos e poemas com esse nome. Mês em que as pessoas se deprimem, fazem balanços de suas vidas, listinhas, flashbacks, exorcizam o passado. Tem aquelas que viajam, carregando tudo o que podem, como se estivessem fugindo. Mas quem pode escapar? Dezembro é um grande golpe psicológico. É o último mês, a última cartada do ano. Eu, que já vi 37 deles, sobrevivi a todos. Talvez o segredo seja não fazer balanço algum. Apenas esperar que a tempestade se dissipe. E, ao final de tudo, abrir a janela, ver os estragos que ficaram ao redor da casa e pensar consigo mesmo: "ufa, essa foi por pouco..."

09 décembre 2005

**De Como Vim a Tornar-me um Mediador da Bienal ou Das Vezes Em Que Escrevo Certinho...



"Ser mediador era um sonho antigo. Eu já flertava com a Bienal do Mercosul desde a sua 2ª edição. Ficava maravilhado com a diversidade de manifestações, embora entendesse pouca coisa. A Bienal, a meu ver, é uma celebração. É quando Porto Alegre respira e vive arte. Tudo o que, para certos "especialistas" como Martha Medeiros, poderia ser rotulado como ferro retorcido e outras asneiras, era para mim, o desejo de se dizer algo quando faltam palavras. Assim, segui alimentando esse amor platônico. A cada dois anos, me imaginava fazendo parte dela. Não bastava ser espectador. Eu queria estar lá, do outro lado, em contato direto com as obras, os artistas, os bastidores, a equipe. A oportunidade surgiu na 5ª Bienal. Me inscrevi – honrando nossas tradições – no último dia, numa sexta-feira à tardinha. Mandei currículo, carta de intenções... numa corrida contra o tempo. Na semana seguinte, a notícia de que eu havia sido um dos selecionados. Depois, aquele curso que mudou bastante a minha maneira de ver e pensar arte e o mundo ao meu redor. A tensão entre os questionários, quando eu pensava que seria eliminado no meio do caminho. Percebia que os candidatos estavam tensos também. Finalmente divulgam a lista e o amor pela Bienal passou a ser correspondido. Agora eu era um mediador. Mediador? Mas que diabos faz um mediador? Até então, eu me imaginava como um monitor, tomando conta das obras e sorrindo para o público. Nada disso. Eu mediaria grupos. De diferentes faixas etárias, escolaridade, classes sociais. Um poço de timidez lidando diretamente com pessoas, conversando sobre arte, obras e artistas. Tarde demais para desistir. Fiquei feliz quando soube que trabalharia no MARGS, um museu pelo qual tenho um imenso carinho, e estaria diante de obras históricas dos anos 50 em diante. Dias antes do início da Bienal eu conhecia poucos artistas. Começamos nossas pesquisas, enquanto a ansiedade só aumentava. Finalmente, o enfrentamento. O início da Bienal. Dezenas de grupos agendados à nossa espera. Primeira mediação: grupo de taxistas de um curso de turismo. Muitos nunca haviam entrado no MARGS. Eles olhavam admirados para a imponência do prédio que quase ofuscava as obras. Queriam saber mais sobre o MARGS do que a respeito da Bienal e as obras ali expostas. Percebi, então, que haveria, sim, públicos muito heterogêneos. Que eu aprenderia muito com eles também, que estaria diante das mais diversas e inesperadas opiniões e reações. Conversei muito com os colegas mediadores a respeito dos artistas e do período em que estes viveram. Foram diferentes olhares, todos extremamente interessantes e enriquecedores. Mediadores que cursavam Arquitetura, Artes, História, Letras... tornaram-se amigos. No meio de tanta correria para cumprir horários e realizar mediações, descobríamos afinidades que a arte nos proporcionou. O cansaço era superado pelas conversas, mesas de bar, "horas felizes" e até piqueniques. E ouvíamos cada uma. Tantas histórias acabaram sendo registradas no "livro de causos". Merecia ser publicado. Acredito que poucos mediadores não foram confundidos como o "dono da obra" ou como o próprio autor. Eu mesmo já fui autor das obras cinéticas da Matilde Perez ou dono dos desenhos do Amilcar de Castro. De uma certa forma, nos sentimos responsáveis, após convivermos diariamente com elas, conversando a respeito com o público, pesquisando sobre cada artista. Nos tornamos íntimos, meio cúmplices até. Barcala, por exemplo, conquistou vários admiradores. Mira Schendell fascina com suas obras e vida praticamente desconhecidas por tantos.
Presenciei visitas realizadas em frações de segundo, outras que ficavam horas diante de um único trabalho do Waldemar Cordeiro. Gente que xingava que "aquilo não era arte", que o filho fazia igual, que não penduraria "aquilo" na parede. Pessoas que queriam tocar nas obras, outras que só queriam usar o reflexo para arrumar o cabelo. Vi também olhares brilhando fascinados, pessoas surpresas, chocadas, curiosas, desconfiadas, questionando o que é arte. Gente que perdeu o medo de ver arte de perto.
Ouvíamos de tudo, mas gostaria de ouvir muito mais. As pessoas ainda têm medo de se expressar, de opinar.
Acredito que toda essa experiência não termina com o encerramento da 5ª Bienal. Muito do que aprendemos terá continuidade de alguma forma. Seja numa simples conversa, na área em que atuamos, nos estudos, em diversas atividades que possamos desenvolver. O vírus da arte ficou incubado em nós."
**Texto-depoimento escrito para a Bienal