17 avril 2006

um sopro









“Minha amiga deve ser um pássaro,
Porque voa!
Minha amiga deve ser imortal,
Porquanto morre!
Tem farpas qual abelha.
Ah, singular amiga,
Tu me intrigas!”


Emily Dickinson

Algo como uma fumaça... quase imperceptível. Dessas que o vento leva até desaparecer. Uma fumaça de cigarro com seus veneninhos. Acho melhor assim.

excesso de moderação






















“As tuas insatisfações, por outro lado,
Chegam pela ranhura da caixa do correio com regularidade amorosa,
Brancas e vazias, expansivas como monóxido de carbono.”

Sylvia Plath

Ela decidiu se matar. Não com facas, navalhas, giletes. Tinha uma facilidade imensa para se cortar a-ci-den-tal-men-te, quebrando copos e pratos por distração [da mesma maneira que pessoas que ela julgava amar lhe escorriam inevitavelmente das mãos]. Era medrosa demais [medo ou covardia?] para se matar assim. Também um tiro estava fora de cogitação. Jamais manuseara um revólver em toda sua desastrada vida. Enforcar-se? Violento demais, morte por asfixia! Tivera asma quando criança, trauma de infância não conseguir respirar no meio da noite. Pular do edifício não lhe dava garantias, tinha medo de altura. Dava arrepios nas pernas só de imaginar. Pensou então em venenos, algo bem shakespereano. Um veneno que fosse doce o suficiente, como um copo de nescau ou uma caixa de bis [doce como um beijo, pensou, voraz e apaixonado, mas de onde tirou isso?]. Seu nome era Clarice. Por coincidência, o mesmo da escritora que ela venerava. Ela decidiu então se matar. Fumando. Sua escritora também fumava, usava um pequeno isqueiro como pingente. Clarice – a não-escritora – começou a fumar com-pul-si-va-men-te, como naquele monólogo inspirado nos textos de Caio F. Antes e depois do café da manhã, ela fumava. Na parada do ônibus. Antes e depois do almoço e do jantar. Fumava enquanto lia e ouvia música. Só não fumava dormindo porque lembrou-se de Winona Ryder que, por pouco, não incendiara a casa ao dormir com um cigarro aceso entre os dedos. Fumava escondido nas dependências da repartição pública que ela odiava. Nos cafés, nos bares, nas festas. Fumava e dava-lhe ânsia de vômito. O gosto horrível, o cheiro insuportável nos dedos [pensou nos belos dedos de Winona Ryder]. Sentia umas fisgadas nas costas, um peso no coração. “Cigarro faz mal ao coração?” Sentia que escurecia por dentro, tragando não-sei-quantos-mg-de-substâncias-químicas-cancerígenas. Seria uma morte lenta? Até chegar o dia em que começou a se aborrecer. Com o cheiro, o gosto. Com o maço de cigarros que se amassava no bolso das calças jeans. Com os isqueiros perdidos como guarda-chuvas. Com quem lhe pedia cigarros na rua. E o que pode ser pior – para um fumante – que ficar sem cigarros em casa à uma da manhã? Ou quando se tem dois míseros cigarros e sabe-se que aquela noite será longa demais para ser suportada com apenas dois desesperados e exasperantes cigarros.
Foi assim que Clarice parou de fumar pela terceira vez. No entanto, sentia que seu coração permanecia negro e pesado como uma embarcação antiga que vai naufragando. Mas isso ela sempre sentiu. Muito antes de começar a fumar...