13 juin 2006

quem ousaria calar Sylvia Plath?



Raramente acendo a luz da sala. Talvez por não querer me expor a mim mesmo. A Sra. Claridade grita que, bem, aqui estou, vivendo nesse apartamento, e que eu preciso, de alguma forma, dar um jeito na minha vida. É como deparar-se com seu reflexo diante do espelho na crua luz da manhã. “Vai ser gauche na vida!”, diz o espelho... Por que escrevo todas essas bobagens? Porque só decidi descer o elevador e buscar uma encomenda na portaria do prédio quando já passava das nove da noite de um sábado completamente encoberto.

Há coisas que chegam pelo correio (descontando, é claro, contas e propagandas) com um sabor tão especial que eu não teria competência suficiente pra descrever. Mas o que era, afinal, essa encomenda? Posso lhes assegurar tratar-se de algo sagrado, excitante, belo, comovente, um tesouro precioso e que se chama... livro! E do que trata esse livro para ser assim ”tão” valioso? Ora, ele fala (livros falam, é claro) a respeito de alguém que, se não transformou inteiramente a minha vida, mostrou o quanto esta pode ser profunda e, paradoxalmente, amarga e bela. Essa pessoa de quem fala o livro (eles falam! podem acreditar) me amparou em tantos tropeços, nos períodos mais sombrios dos quais você acha que nunca mais voltará. Essa pessoa que me faz estremecer, que me faz acreditar “que alguma coisa... divina aconteça”, essa pessoa chama-se Sylvia Plath.

O livro veio de longe (na verdade nem tão longe assim, mas antigamente poderia ser que levasse muitos dias para chegar), de um lugar chamado Coisa Antiga e que fica numa cidade que eu nem conhecia, chamada Pilar do Sul, em São Paulo. O envelope, acreditem, endereçado a mão. O livro, motivo de todo esse estardalhaço (cinco dias esperando uma carta registrada), chama-se “A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia”, sensivelmente escrito por Janet Malcolm.

Foi esse o motivo que me fez acender a luz da sala, me recostar aos pés da poltrona, escolher um disco de Jacqueline du Pré e, a ponto de quase perder o fôlego, abrir suas primeiras páginas. Sylvia é essa claridade que me me faz enxergar o que eu não teria coragem de ver sozinho. A minha própria cara na frente do espelho.

stereoplastificada



Sentada no chão da sala, de pijamas, ela fuma um cigarro atrás do outro. É um domingo, três da tarde no celular. Timidamente, ela espia, por entre as cortinas – olhos cheios de sono –, o dia azul & cinza lá fora (dentro dela, apenas cinza), como se fosse uma festa da qual não tivesse muita vontade de participar. “Por que me sinto paralisada, plastificada de medo?”- Parece uma louca falando sozinha, ouvindo Stereoplasticos sem parar.

Ainda não acordou direito. Para ela, a manhã está apenas começando, seu relógio biológico diz que ainda é cedo. Em voz alta, ela pensa: “acorda, vai limpar logo essa sujeira! Pega mal se alguém te ver agora e te encontrar assim, com todos esses pedaços de coração espalhados pela casa”. Então, ela vai até o quarto, buscar o aspirador. Não sem antes acender outro cigarro e ouvir “Lonas Bicolores” mais uma vez.

10 juin 2006

joguinho de esconde-esconde



"...então jogo as palavras para cima
e o que cair no papel talvez diga o que quero.
Ou talvez não. Mas se não disser, aí tenho sempre uma desculpa
para tentar de novo."
Mme. Archenar

Ela chega bêbada ao apartamento, após a quinta tentativa de abrir a porta (“malditas chaves doberman...”) no escuro do corredor. Botou Angela Ro Ro para tocar e, com um copo imaginário na mão, põs-se em frente ao espelho, maquiagem borrada por lágrimas, suor e chuva de outono. Mais se assemelhava a um rascunho de desenho a carvão :

“O seu mal, Epiphany, é que você fuma demais, bebe demais, sente demais, idealiza demais. O amor? Oh, sim, o amor. Nada mais é do que uma série de reaçõezinhas químicas em maior ou menor escala. O ser humano é químico, é físico, um animalzinho com mania de grandeza. Olhe para você mesma, Epiphany, uma escritora que não publica, uma cineasta que não dirige. O que você sente é um peso para os demais, um estorvo. Você sonha com os louros do reconhecimento sem haver realizado porra alguma. Agora, eis você aí, procurando ocultar os vestígios de um amor que nunca existiu. Esconde as camisetas dela numa gaveta, o perfume dela, a escova de dentes dela, o outro travesseiro. Mas onde você esconderá o que sente por dentro?”

Ela deixa-se cair sobre a cama desarrumada há dias. A cama, aliás, pode ser um retrato revelador do nosso estado psicológico. Você já analisou a sua? Então, ela sente que algo começa a fazer-lhe cócegas no rosto. Acende a luz do abajur e depara-se com um fio de cabelo que, definitivamente, não é o seu. Um longo e fino fio de cabelo ruivo a lhe sussurrar nos ouvidos:
"isso que você sente aí dentro, menina, não se esconde em gavetas”.

08 juin 2006

sim, ela não...


Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo

Mas hoje eu pus fogo na cama
e a fumaça está enchendo o quarto,
está ficando tão quente que as paredes estão derretendo,
e a geladeira, um dente branco se desmanchando.

Anne Sexton


Ela mora numa cidade onde sentir saudades é crime. Assim, ela vive escondida num apartamento emprestado, assistindo a videoclipes na MTV a madrugada inteira, como se tomasse um porre semelhante ao da personagem de “Live with me” do Massive Attack. Quando vê Pixies, pensa consigo mesma: “jamais haverá uma banda como essa...”. Mas muda logo de opinião quando vê “Head On” com Jesus & Mary Chain. Oh, sim, seus olhos brilham diante da televisão, contemplando os cabelos sobre os olhos de Jim & William Reid, suas guitarras distorcidas, suas roupas pretas & vozes aveludadas. “Oh, yea, eles cantam pra mim!”. Os cigarros se consomem rapidamente, abarrotando o cinzeiro como corpos abandonados numa vala comum. Ela dorme no sofá assistindo a “Sugar Kane” do Sonic Youth. Se arrasta até a cama. Acorda à uma da tarde. Recebe duas chamadas por engano. Recebe uma mensagem, outro engano. Sim, ela não apareceu. O maior dos enganos. Ela sente sua falta. Pensa nos pés dela. No gosto que tem sua pele. Sente seu perfume pelo apartamento. Ouve Los Hermanos para se torturar. Ouve Björk. Escreve uma linha a máquina, uma carta que não sai do lugar. Nada sai do lugar (outro engano?).

Havia sangue na pia da cozinha. Demorou a reconhecer o próprio sangue. Esquece muitas vezes que, o que nos move, é esse líquido quente e vermelho (não tão doce quanto mel...). Ela acha que seu sangue é ralo, uma gasolina adulterada. Limpa a geladeira minuciosamente, cada prateleira, cada gaveta. Ao final, o que tem diante de si, é um corpo limpo, frio e vazio, um cadáver que foi dissecado. Ela sente-se como uma geladeira vazia. Um corpo limpo e frio, consumindo-se rapidamente.

Às putas que a literatura pariu




- À puta que pariu a literatura! Quero ver esses escritorezinhos de merda destruindo tudo ao redor. Não essas frases todas no lugar certo como se postas à mesa de um restaurante caro. Quero a gana do Arcade Fire, esse desespero pela poesia. Não às palavras vãs, ao falar só por falar. Quero a poesia sangrando! Cadê a alma que os cristãos pregam? Pregar. Nisto eles são mestres. Pregam seus próprios mártires. Você não está entendendo o que estou tentando dizer, não é? Eu também. Não é mesmo para entender. É que esse marasmo literário me irrita. Festas literárias em Paraty onde apresentadores de televisão descem de helicóptero. Muita pose para pouca escrita. Deve ser por isso que o Raduan não escreve mais, foi cuidar de coelhos. Se é para publicar na revista Cláudia, melhor é criar galinhas. Elas que, aliás, foram fonte de inspiração à Clarice e ao Caio.

- Eu entendo. Entendo perfeitamente o que você quer dizer. Compreendo bem toda sua indignação. Mas precisava ficar nesse estado por causa de um videoclipe do Arcade Fire?

- Oh, meu bem... desculpa... Acho que... havia algo de estranho nesse chá de camomila. Prova...

- Esquece, esquece. Não foi nada. Vem, amor, vamos dormir.