31 octobre 2006

brilho eterno no varal de lembranças



"... o meu pensamento tem a cor do seu vestido..."

Lô Borges


Quem passasse pela janela da sua cozinha, avistaria um vestido vermelho. Um vestido que tanto relutara em lavar. Perfume, amor, cheiro, gosto, momentos preciosos da sua vida seriam lavados e centrifugados numa máquina de lavar roupas. Por fim, ela tomou coragem. Não sem, antes, abraçar o vestido, conversar com o vestido, fazer-lhe juras de amor eterno. Tinha, em suas mãos, um vestido vermelho vazio. Era como seu corpo: sem alma, silencioso, à espera. Com pesar, ela coloca o vestido vermelho na máquina, acrescenta sabão em pó omo com amaciante comfort. Aperta o botão e se afasta, incapaz de presenciar uma cena como aquela. Havia um que de "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças": doloroso, com requintes de crueldade. Sentia seu coração dar voltas impiedosas dentro da máquina, afogando-se. Senta-se diante do computador, prepara um fundo musical, um anestésico: CocoRosie, Giant Drag, Magic Numbers... quem seria capaz de amainar o seu sofrimento? Dúzias de cigarros e músicas depois, o silêncio. Silêncio na cozinha. Tarde da noite, ela retorna ao local do crime. Retira o vestido vermelho molhado, estende-o na parte mais nobre do varal: bem diante da janela da qual se avista o Guaíba sorvendo óstias de pôr-do-sol. Crime consumado, ela volta para o quarto. Sonha com vestidos vermelhos, sonhos com cheiro e gosto da dona daquele vestido. Acorda com a claridade do sol invadindo a sala. Vai para a cozinha fazer café e sorri. Diante dela, um vestido vermelho estendido no varal. Um vestido vermelho vivo perfumando a casa inteira. Quem passasse diante da janela da sua cozinha, veria, naquele vestido vermelho, um símbolo de persistência. De que seu amor resiste a tudo: ao tempo, à distância. E a máquinas de lavar roupas.

29 octobre 2006

entre papéis amassados e latas de nescau



Todos os dias passeava secamente na soleira do
quintal
À hora morta, pedra morta, agonia e as laranjas do
quintal
A vida ia entre o muro e as paredes de silêncio
E os cães que vigiavam o seu sono não dormiam
Viam sombras no ar, viam sombras no jardim
A lua morta, noite morta, ventania e um rosário sobre
o chão
E um incêndio amarelo e provisório consumia o coração
E começou a procurar pelas fogueiras lentamente
E o seu coração já não temia as chamas do inferno
E das trevas sem fim.

Haveria de chegar o amor.

Egberto Gismonti


Chega em casa e começa a esvaziar os bolsos. Em cima da mesa, larga as chaves, documentos, fichas de vale-transporte, cédulas amassadas, um celular surrado, um maço de marlboro light, o isqueiro, seus pedaços de papel com anotações e uma caneta. As moedas todas que lhe sobram, ela guarda numa lata vazia de nescau. Já perdeu a conta de quanto tem, mas acredita que, um dia, terá a quantidade necessária para comprar uma passagem até o amor de sua vida. Por esse motivo, em hipótese alguma, jamais gasta uma moeda sequer.

Ela sempre carrega pedaços de papel nos bolsos. Acredita que perderá seus pensamentos se não anotá-los, que lhe escaparão pela janela do ônibus, no chão das salas de cinema, sobre o balcão da padaria, entre um sono agitado e outro. Depois reescreve tudo no que ela batizou de caderno de desapontamentos [mais tarde, veio a descobrir que esse nome já existe, ficando ainda mais desapontada]. Ela se define como uma escritora que não escreve. Se considera uma escritora tão marginal que jamais publicará livro algum.

28 octobre 2006

Sobre anjos e outros grilos




Com um cigarro entre os dedos, ela se debruça sobre sua vida. Diante dela, centenas de camundongos brancos e inocentes, correndo perdidos por todos os lados. Mas seus olhos atravessam essa imagem. Olham para o nada. Pobres camundongos brancos, à mercê de uma ciência inútil. Mas ela pensava era em outra coisa. Pensava na sua mente paralisada. Seu corpo também está paralisado. Ontem, a caminho da parada de ônibus, percorrendo a longa avenida, percebeu que não sente seus pés pisando no chão. Ontem, lembrou-se do onteontem. Chico Buarque cantando em seus ouvidos numa ensolarada manhã de desenho animado, com borboletas laranja e joaninhas a pousarem em seu braço. Um sorriso estampava-se no rosto com uma doce voz a lhe sussurrar... com açucar, com afeto... Esse dia prenuncia coisas boas, pensou. A noite, no entanto, foi de pesadelos. Sonhava que seus sonhos desmoronavam. Que borboletas laranja e dias ensolarados não passavam de alucinação. Hoje, pensou no ontem. Sem Chico Buarque, sem direção, sem alma. Surdo-muda. Enfim, lembrou-se da noite de ontem e o sorriso esboçou-se novamente em seu rosto. As borboletas e joaninhas é que tinham razão. Agora ela vê anjos por toda parte.

24 octobre 2006

cabo de guerra


Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?

Cecília Meireles

Com um pé, ela caminhava. Do outro tiraram-lhe o chão. Agarrava-se com uma das mãos. A outra nada alcançou. Um olho insistia em brilhar. Do outro, roubaram-lhe a visão. Tem uma asa que voa. A outra quebrada, no chão. Qual é o lado mais forte?

Lição de Casa

São os trapos do coração
a escorrerem caminhos afora
trapos e tripas
vomitados em golpes escuros
sobre os tetos frios destas
noites
trapos e tripas
tripas e trapos
fitas e fitas
f a r r a p o s
(Diva Cunha)

Sentiu
as pernas fracas
a cara na lama
o sentimento de culpa
a alma distante
uma dor no peito
o coração apertado
uma falta de ar

Perdeu
o sorriso no rosto
o chão onde pisa
a alma distante
o sentido de direção

Passou
as noites em claro
escrevendo diários
pedindo perdão

22 octobre 2006

Cortina de Fumaça

Chan Marshall

As teclas pretas do meu teclado tornaram-se cinza, tamanha espera. Fumaça embaçando o monitor e o quarto. Embaça os olhos, os pulmões, o coração. Embaçam minhas retinas tontas e habitadas. Roubo palavras alheias e imagens que não são minhas, ladrão que rouba flores do jardim vizinho. Essa fumaça que me ronda tem mais cor que a minha invisibilidade. A invisibilidade da espera. À espera de uma rara e fortuita visita.

Fumo

Florbela Espanca

Longe de ti são ermos os caminhos.
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem
ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisantemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho!
Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

21 octobre 2006

Correspondência para Macau

Macau, China


Reticências, reticências... é o ritmo dos dias, das horas que parecem andar para trás. Se fossem lesmas, ao menos deixariam rastros. Aqui há rastros. Não de lesmas. Há rastros da portuguesinha de Macau que passou uns dias por aqui. Há o cheiro dela pela sala, pelos livros e roupas, na cama, no travesseiro. Há fios de cabelo sobre o carpete, um vestido vermelho na cozinha, uma borboleta de óculos pousada na porta da geladeira. É com essa portuguesinha que ele deseja se casar. É essa portuguesinha que ele deseja e com quem quer viver e dividir todos os seus dias. Ele olha mais uma vez para a foto sobre o piano, para a cortina branca na janela da sala... e recomeça a escrever a carta, balbuciando em voz baixa, sorriso no canto da boca: "Ah, minha romântica senhora Tentação..."

Interlúdio

As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.


Cecília Meireles

19 octobre 2006

Ciranda Cirandinha



Um gosto amargo na boca, um coração no céu da boca. Cigarros e chocolate eram tudo que seu organismo debilitado suportava absorver. Há dias não sujava um único prato. Não via estrelas, não havia estrelas. Perdeu a lua de vista. Não havia músicas que a confortassem, uma única página, dentre os dezesseis livros, todos abandonados pela metade, que lhe dissesse: "respira fundo, sossega o coração...". Ela repetia, em voz baixa: "engole essa saudade... engole com muita água até que te tornes transparente, sem gosto e sem cor. Invisível. Incolor. Indolor". Água pela garganta, água até o pescoço, água até não mais. Sua infância, a dançar em torno dela, cantarolava cantigas de roda...
"o anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
em pedrinhas, em pedrinhas de brilhante
para o meu, para o meu amor passar..."

resto de frase




Onde foram parar seus olhos experientes e intensos, Natalie?

17 octobre 2006

I Found a Reason



"... Como não repetirei, a teus pés, que o profissional esconde no
índice onomástico os ladrões de quem roubei versos de amor
com que te cerco.
Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar
a ladroagem..." [Ana C.]

EU ENCONTREI UMA RAZÃO

Oh, eu acredito
Em todas as coisas que você diz
O que está por vir será melhor do que já foi antes
E você seria melhor
vindo vindo, vindo vindo pra mim
Melhor
vindo vindo, vindo vindo pra mim
Melhor
correndo correndo, correndo pra mim
Melhor vindo

Oh, eu acredito
Em todas as coisas que você diz
O que está por vir será melhor do que já foi antes
E você melhoraria vindo vindo, vindo vindo pra mim
Melhor
vindo vindo, vindo vindo pra mim
Melhor
correndo correndo, correndo pra mim
Melhor correndo...

I Found a Reason [Lou Reed]