31 décembre 2006

raio azul celeste



Encher estes espaços com os dias
No meu quarto, você pode ir ou ficar
Eu não consigo dormir, eu não consigo falar pra você
Agora estes anos travados em minha gaveta
Eu abrirei para ver, somente para ter certeza
Eu não consigo dormir, eu não consigo falar pra você
E assim eu estou quase alcançando unicamente
E então eu aprendi o significado do sol
E tudo isso é como uma mensagem que vem deslocar meu ponto de vista
Eu estou observando através da minha própria luz
Como ela colore a sua máscara
Segure meu vinho, segure ele aí
Ninguém está perdido, mas ninguém ganha...

Azure Ray, "Sleep"

We'll drink our tears and thirst for more
It's our lot in life
They are elephants we are mice
So keep this a secret
Keep this a secret
We are mice...

Azure Ray, "We Are Mice"


Pegue as músicas mais tristes que puder encontrar nos discos da Cat Power, junte com as melodias e vocais mais desoladores da Hope Sandoval e do Gentle Waves e você terá uma banda chamada Azure Ray. Na verdade, uma dupla - Maria Taylor e Orenda Fink são de Athens, Georgia [EUA] -, lançaram seu 1º disco - Azure Ray - em 2001 sem que muita gente percebesse. Em seguida, vieram Sleep EP [2002], Burn and Shiver [2002] - meu favorito -, November EP [2002], Hold On Love [2003], The Drinks We Drank Last Night [2003] e New Resolution [2004]. Para apreciadores do Moby [o que não é o meu caso], os vocais das meninas estão em "Great Escape" do CD 18. Elas também o acompanharam em algumas turnês.

Não espere uma só canção alegre por parte delas. É música para ser ouvida longe de qualquer objeto capaz de ameaçar sua vida. Se for ouvi-las diante da janela, tenha cuidado. Também não recomendo ouvi-las dentro do carro. De preferência, pare no acostamento. E o coração, muito cuidado com ele.

Quando alguém vier lhe dizer que Belle & Sebastian é triste demais, lembre-se de Azure Ray.

28 décembre 2006

estrelas marinhas


"Esta é a luz da razão, fria e planetária.
As árvores da razão são negras. A luz é azul."


Sylvia Plath

Sim, é preciso que a chame de Sra. Plath. Sylvia, certamente, haveria de provocar mal entendidos. A senhora deve muito bem saber o que é ter uma asa cortada, Sra. Plath. Não apenas uma ou duas vezes. Mas uma infinidade delas. A senhora já presenciou esta cena antes: vão até à cozinha, pegam uma faca - dessas usadas para desossar galinhas - na gaveta e, segurando firme sua asa, cortam-na de cima a baixo, sem hesitar. Ela sangra, as penas tingem-se de vermelho. Não é de se espantar, contudo, que ela volte a brotar, como braços de estrelas marinhas. Ela resiste. Teimosamente resiste. Como o amor que tanto defendemos, o amor pelo qual lutamos tão quixotescamente. Lembro de Joana D'Arc nessas horas, a única santa na qual insisto em acreditar. Ela não media esforços e foi perseverante até o fim, fiel àquilo em que acreditava, embora, para muitos, não houvesse passado de um delírio, de um fanatismo. Palavras secas e o destino é certo, Sra. Plath. São de uma precisão impressionante.

25 décembre 2006

dom de iludir-se



A primavera está no ar
Eles estão varrendo as ruas
O vento é uma brisa
O sol se transforma nele, ele concorda

O que mantém o rosto dele levantado?
Nada além dos céus azuis,
Corredores que levam às janelas
Que não se fecham

Onde você mora?
Amor é um lugar
De onde você é?
Ela diz, pergunte a você mesmo, pergunte a qualquer um

O que mantém o rosto dele levantado?
Nada além dos céus azuis,
Corredores que os olhos da mente
Contemplam...


Metric, "Love is a Place"


Procura ocupar-se das pequenas coisas como lavar louça e roupas, limpar a casa, brincar com a gata que lhe pede atenção. Gatos percebem quando sorrisos não são verdadeiros? Vê uma pilha de roupas sobre a tábua de passar, pilhas de livros interrompidos, anotações pela metade como montanhas intransponíveis. O peso do ar sem vento de uma tarde de Natal é diretamente proporcional ao peso do próprio coração, ao peso de um sonho que ela se esforça por erguê-lo sozinha. Sente o coração envenenar-se, tingir-se de cinza. Um dilaceramento por dentro como algo prestes a implodir. Cada palavra vaga é um empurrãozinho para que o castelo de cartas - que ela não recebe - desabe. Coleciona músicas obscuras e melancólicas no computador como brinquedinhos que finge acreditar pertencerem a ela apenas. Como se fosse a única, no mundo inteiro, a escutar The Decemberists, Architecture in Helsinki, Blonde Redhead, Metric. Ela sabe que não é verdade. Mas deixa-se iludir. Deixa que os outros a iludam. E ainda finge que acredita.

09 décembre 2006

snakes

Cinderalla, de Junko Mizuno

O beijo traiçoeiro da serpente.
Petrifica o desejo. Esses são os erros, solitários e lentos,
Que matam, matam, matam.

Sylvia Plath, "Olmo"


Era uma vez uma menina que trabalhava num lugar estranho. Um lugar repleto de serpentes venenosas. Ela pareceria estranha trabalhando num lugar assim. Mas era vista como estranha nesse próprio lugar. Ela não tinha nada de diferente. As mesmas camisetas de bandas de rock, os mesmos all star verdes e encardidos, os mesmos jeans velhos e surrados. Por que pareceria estranha? Ela respirava literatura, música e cinema o tempo inteiro. Sua vida era movida a novas descobertas, mesmo que se tratassem de um livro antigo ou um disco de alguém que não se ouve mais. Ouvia Chico Buarque com Cat Power, Dresden Dolls com Cartola, Chopin com My Bloody Valentine. Ela trabalhava repetindo os mesmos gestos de sempre. E os pensamentos tão longe, povoados por músicas que pareciam surgir do nada, compondo a trilha sonora do seu estado emocional. Palavras, textos que lhe vinham, escapavam-lhe sempre que chegava perto de um pedaço de papel e uma caneta.

Ela não parecia ter muito apego à vida. Houve uma vez em que sofreu um sério acidente. Sua visão ficou turva, a temperatura despencou, ficou entre a vida e a morte. A caminho da emergência, sentindo uma dor insuportável, ela apenas imaginava o sofrimento pelo qual passaram todos aqueles camundongos. "Então era isso que eles sentiam", pensou. Ao seu redor, ela ainda enxergava uns rostos atônitos, bocas em "o". A equipe médica a irritava com tantas perguntas. Queriam saber o nome de algum parente, o telefone desses parentes. "Eu não tenho parentes! Façam parar essa dor, por favor!" Então ela não enxergou mais nada. Não viu flashback algum. Deve ser coisa de cinema. Voltou a si no dia seguinte, com tubos e soro num quarto repleto de doentes. Dezoito dias se passaram naquele quarto em que, de olhos fechados, imaginava as ruas do Bom Fim, ouvindo os sons da movimentada Oswaldo Aranha. A luz do sol eram apenas manchas pálidas nas paredes brancas. Médicos, médicos residentes, estudantes de Medicina, enfermeiras, estudantes de Enfermagem, psicólogos, estudantes de Psicologia, colegas, amigos, família. Até freiras. E padre, não vai ter? Lembrou de Rimbaud blasfemando, achou engraçado.

Num certo dia, entre os dezoito que lá passou, a levam, sobre a cama de rodinhas, através de um corredor com pouca iluminação. Agora ela está sobre uma mesa de cirurgia. Ela nunca tinha visto uma mesa de cirurgia. Ela não sabia que uma mesa de cirurgia assustasse tanto. A iluminação ofuscando os olhos aumenta a tensão. Ela recebe doses de anestesia como choques pelo braço e pescoço. "Se tudo isso pudesse ser apenas um longo pesadelo..." Ela acorda no outro dia, a mão esquerda enfaixada. "Se tudo isso não tivesse passado de um pesadelo..."

Hoje, ela ainda repete os mesmos gestos, no mesmo lugar estranho. Mesmo sabendo que, da próxima vez, não haverá mesa de cirurgia. Seu corpo não suportaria uma dose de veneno sequer. Reduziu sua imunibilidade. Mas o apego à vida, sim, ele está presente, porque seu coração bate diferente todos os dias. Por alguém que mora lá dentro e gravou palavras e sentimentos muito fundo, como uma tatuagem na alma. Assim, ela se arrisca todos os dias, mesmo querendo vivê-los todos, mesmo sabendo que este poderá ser o último, o único e inadiável dia. E como gostaria de poder compartilhá-lo com este alguém.

07 décembre 2006

quando é noite de lua cheia



Se a lua sorrisse, teria a sua cara.
Você também deixa a mesma impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são peritos em roubar a luz alheia.
Nela, a boca aberta se lamenta ao mundo; a sua é sincera,

E na primeira chance faz tudo virar pedra.
Acordo num mausoléu; te vejo aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Desconfiado como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco pra dizer algo irrespondível.

A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas reclamações, por outro lado,
Pousam na caixa do correio com regularidade encantadora,
Brancas e limpas, expansivas como monóxido de carbono.

Nem um dia se passa sem notícias suas,
Vadiando pela África, talvez, mas pensando em mim.


Sylvia Plath, "Rival"


Não era um dia ensolarado como o de hoje. Estava nublado e fazia frio. Mas seu coração estava quente e agitado. Mãos suavam, pernas tremiam e ela a aguardava com ansiedade. Foi exatamente nessa data - também uma noite de lua cheia - que ela a beijou pela primeira vez. O primeiro café, o primeiro cigarro. As músicas mais perfeitas tocaram naquele café. Pareciam feitas sob encomenda. Foi quando ela a tocou pela primeira vez, encantou-se com seus olhos pequenos e tão próximos, brilhantes. A boca tão perto, as mãos. Os dois bombons que havia guardado exatamente para aquele dia, foram consumidos como hóstias numa comunhão. Trocaram alianças e cartas que, agora, seriam entregues pessoalmente. Pensava nisso agora, com o coração gelado de tanta cerveja, a alma nublada com tanto cigarro. Encolhe-se no sofá, ao abrigo da luz vermelha do abajur, das músicas que vêm do quarto e da lua, imensa na janela, cujo clarão torna as cortinas mais brancas, como fantasmas. Apenas a lua, sua única testemunha, seria capaz de compreendê-la.

05 décembre 2006

je pars en cendres



Je ne suis qu'une forme aux contours incertains
Avec un regard morne un tantinet hautain
J'avance à l'aveuglette et je suis mal luné
Une pièce sans fenêtre avec vue sur mes pieds

À force de malentendus je suis mal-entendant
Et ces déjà-vus me rendent malveillant
Je ne fume plus mais je pars en cendres
Combien de temps me faudra-t-il encore t'attendre

Je l'entends bien souvent le soir murmurer
Prendre á tèmoin le ciment des murs abîmés
Il leur promet du beau mais il se sent bien laid
En face de sa photo sur la table de chevet

À force de malentendus je suis mal-entendant
Et ces déjà-vus me rendent malveillant
Je ne fume plus mais je pars en cendres
Combien de temps me faudra-t-il encore t'attendre

Je ne fume plus mais je pars en cendres...

"En Cendres", Émilie Simon


Quando parece inútil falar português.

04 décembre 2006

piruetas

Émilie Simon

Sobreviver à mais longa noite,
Que se estende mais um dia
E nos leva a um sono profundo.
E nos leva à primeira aurora,
À primeira palavra.
O primeiro silêncio carrega palavras
Jamais escutadas.
Jamais...

Sobreviver à mais longa noite.
Imbuído no mundo e sentido por adiar
o que nunca mais consegue falar...

"Noturna", Wandula


Minh'alma volta a ensaiar seus primeiros vôos. Aquela asa que andava em inatividade, talvez por-falta-de-energia-em-nossos-transmissores, parece erguê-la novamente do chão. São vôos movidos por olhos brilhantes e sorrisos tímidos, mas contagiantes. Minh'alma não tapa mais os ouvidos nem grita. Ela escreve cartas, ouve Cat Power e Émilie Simon [sim, foi ela quem compôs a trilha de "A Marcha dos Pingüins"]. Ela voltou a ficar besta quando assiste às performances de Siouxsie & the Banshees, sua antiga paixão [isso por volta de 84]. Seus passos tornaram-se menos trêmulos e ela sonha quando dorme. Sente gostos e cheiros familiares. Ela voltou a ter bons presságios. Ela os lê quando os olhos, que tão incansavelmente busca, a enxergam outra vez.

désert


Oh, o meu amor, a minha alma gêmea
Eu conto os dias, conto as horas
Eu quero desenhá-lo num deserto
O deserto do meu coração

Oh, o meu amor, o teu tom de voz
Faz a minha felicidade a cada passo
Deixe-me desenhá-lo num deserto
O deserto do meu coração

Na noite, às vezes, parado à janela
Eu espero e naufrago
Num deserto, o meu deserto, aí está

Oh, o meu amor, o meu coração é pesado
Eu conto as horas, eu conto os dias
Eu quero desenhá-lo num deserto
O deserto do meu coração

Oh, o meu amor, passo à minha volta
Eu abandonei os arredores
Eu deixo-o, aí está, é tudo

Na noite, às vezes, parado à janela
Eu esperarei e naufrago
Lanço ao vento as minhas tristes cinzas, aí está...

Émilie Simon, "Désert"

02 décembre 2006

lentilhas

Não querida, não é preciso correr assim do que
vivemos. O espaço arde. O perigo de viver...

Ana C.


Em breve, chegará o Natal. E haverá essas luzinhas coloridas piscando, shoppings centers cheios, sacolas, filas no supermercado. E famílias que se amam somente na hora de trocar presentes. Haverá quem não receberá presentes nem terá família. Mesas fartas e vazias. Fogos, champagne, missa do galo. Haverá os mesmos crimes de sempre. Cadeiras com os lugares vagos. Algumas brigas e gente que se deprime. Gente nascendo e partindo. Lentilhas, nozes, uva-passa.

A personagem que, aleatoriamente aqui escreve, prefere, no fundo no fundo, um bom filme no cinema, longe desse burburinho. Porque, se existe uma coisa que ela não suporta, é um prato de lentillhas que, todo ano, insistem em lhe enfiar goela abaixo.