28 décembre 2007

St. Remy e uma Piscina de Gelo


















Ilustração de Audrey Kawasaki

"We've lived in bars
And danced on tables
Hotel trains and ships that sail
We swim with sharks
And fly with aeroplanes out of here..."

"Lived in Bars", Cat Power


Faz dias que mal me alimento, doutor. Um café, um pedaço de pão. Ou nem isso. E muitos maços de cigarro. Sinto uma alma suja aqui dentro. O senhor acha que pode ser os pulmões? Ah, e esse suor que não desgruda da minha pele. Ontem fiquei horas sob o chuveiro, deitada sobre o piso, vendo a água correr ralo abaixo. Me lembrei de sangue escorrendo. De areia esvaindo por entre os dedos. Do exato momento em que o herói resgata a mocinha ainda com vida, com uma carta ensangüentada nas mãos. Tem uma cortina com desenhos de gatos no meu banheiro, repleta de furos feitos adivinhe por quem? Por um gato, doutor. O senhor entende de gatografia? Oh, como eu desejaria agora estar mergulhada numa piscina de gelo. Até hibernar. Deixar de sentir toda espécie de dor, dessas dores que os exames médicos não enxergam. Precisava era de um remédio para se tomar de colheradas. Colheradas generosas de morte absoluta. Sabor doce e inebriante como Saint Remy, escorrendo pelos cantos da boca. Algo que me embriagasse. Preciso me embriagar novamente, doutor. Preciso que alguém acenda velas e dance para mim. Alguém que erga velas e afunde navios. Preciso que alguém me embriague.

Entendo, entendo. Já tomei demais do seu tempo. Deve haver mais pacientes lá fora, precisando ser resgatados. Mas agradeço seu desinteresse, doutor. A julgar pelo seu triste diagnóstico, diria que o senhor não chegou nem perto do meu... canteiro de taquicardias. Foi Ana C. quem escreveu. O senhor a conhece? É que tenho me sentido assim... tão... Ana C. ultimamente. Tão Wherter. O senhor acredita em reencarnação?

25 décembre 2007

Quatro Mil e Setecentos Presentes
















Ray Caesar, "Trouble Child"


Esta é a luz da razão, fria e planetária.
As árvores da razão são negras. A luz é azul.


Sylvia Plath


Véspera de um Natal sem ceia. Sem enfeites nem confeitos. Sem luzes. Um café preto, um pedaço de bolo. Uma mesa vazia. Quase vazia. "A Insustentável Leveza do Ser", com seu cheiro e cor de livro antigo, é a presença mais nova na casa. Devora cigarros como devora o ar. Devora cigarros como devora desejos e sonhos no ar. Devora vazios. O ar quente de Porto Alegre a sufoca. O silêncio sufocante de Porto Alegre a devora. O silêncio é seco. Seco e planetário. O sol invade a sala. Amarelado como páginas velhas e rasgadas. Rasga as cortinas, amarela os livros, empena os discos. Rouba-lhe o ar. O coração acelera. A fumaça lhe envolve o pescoço como uma écharpe. A écharpe assassina de Isadora Duncan. Mas ela não dança. Não sabe dançar. Efeito das mais-de-quatro-mil-e-setecentas-substâncias-tóxicas presentes no cigarro, no ar quente de Porto Alegre, no silêncio sufocante de Porto Alegre, no café preto, no pedaço de bolo, nos cheiros e cores do livro antigo, no sol que invade e sufoca. Respira. Esquece. Olha, de relance, a gata que caça moscas na cozinha. Ela é a mosca na cozinha que se choca contra o vidro. No interior de um vidro. Sem ar. Respira o vazio. Esquece o cigarro. Esquece o livro, o café, as cortinas rasgadas. As 4.700 substâncias tóxicas presentes. Seus presentes. Ninguém presente. Esquece, sobre a mesa quase vazia, uma página. Quase em branco.

08 janvier 2007

tinta invisível



Talvez eu tenha escrito em tinta invisível
Oh, eu tenho tentado pensar
Como posso fazer reaparecer...

Mas outra ilustração se perdeu
Pois os resultados são os mesmos
Sinto-me como um fantasma que tenta mover suas mãos
Em um "jogo do copo" na esperança de soletrar meu nome...

Aimee Mann, "Invisible Ink"



Havia um gosto de nostalgia nas músicas de Aimee Mann. "É meu antídoto", ela dizia. Ouvir Aimee e Fiona Apple lhe aliviavam o coração. No entanto, engraçado, essas músicas, agora, soam tão tristes. A voz de Aimée mais parece um lamento, ecoando pelo vazio, pela ausência. O coração encolhe, o estômago encolhe, a alma encolhe. "Estou perdida no tempo...". Escreve cartas que caem no fundo de um poço. Abre as janelas e o que vê é tão somente o fundo de um poço. "Drops de Abril" do Chacal à janela do ônibus. "Vou roubar esses poemas pra ela", pensou. As fotos no álbum não são mais as mesmas. Perdeu a alma na sala de embarque. "Tenho a mania terrível de aumentar as coisas ruins que acontecem comigo...". Esconde todos os rastros, os restos dentro de uma gaveta. Mas onde esconder a gaveta? "Escreverei cartas com tinta invisível, escreverei uma história invísivel". Corre para a rua. "Quem sabe os céus ao entardecer não me dizem alguma coisa, alguma palavra... mágica?". Ela olha para cima, olha para os lados, olha para trás. Os céus haviam se tornado invisíveis. Quem acreditará numa história invisível?

06 janvier 2007

conchas na gaveta

Fiona Apple

Você nunca verá a coragem que eu conheço
A riqueza das cores dela não aparecerá dentro de sua visão
Eu nunca brilharei do jeito que você brilha
Sua presença predomina sobre os julgamentos feitos em você

Mas enquanto o cenário cresce, eu vejo em luzes diferentes
As penumbras e as sombras ondulam na minha percepção
Meus sentimentos se esticam e se alargam, eu vejo de alturas maiores
Eu entendo que ainda sou muito orgulhoso para mencionar você

Você dirá que entende, mas não entende
Você dirá que nunca desistirá de olhar olho no olho
Mas 'nunca' é uma promessa e você não dispõe de meios para mentir

Você nunca tocará nestas coisas que eu possuo
A pele das minhas emoções se aloja debaixo da minha pele
Você nunca sentirá o calor desta alma
Minha febre me queima mais profundamente do que eu jamais tenha mostrado a você

Você dirá “Não tema seus sonhos, é mais fácil que parece”
Você dirá que nunca me deixaria cair de esperanças tão altas
Mas 'nunca' é uma promessa e você não dispõe de meios para mentir

Você nunca viverá esta vida que eu vivo
Eu nunca viverei a vida que me acorda de madrugada
Você nunca ouvirá a mensagem que eu mando
Você dirá que parece tão ruim como se eu estivesse desistindo desta luta

Mas enquanto o cenário cresce, eu vejo em luzes diferentes
As penumbras e as sombras ondulam na minha percepção
Meus sentimentos se esticam e se alargam, eu vejo de alturas maiores
Eu percebo que sou agora muito esperto para mencionar você

Você dirá que entende, mas nunca entenderá
Eu direi que nunca acordarei sabendo como ou por quê
Eu não sei em que acreditar, você não sabe quem eu sou
Você dirá que eu preciso de apaziguamento quando começo a chorar
Mas 'nunca' é uma promessa e eu nunca precisarei de uma mentira

"Never is a Promise", Fiona Apple

Ouve Fiona Apple no toca-discos como se fosse uma velha tarde antes já vivida. No mesmo lugar à mesa, fecha os olhos diante da janela que mostra tudo o que ela já viu. A mesma janela que lhe alimentava com sonhos e desencantos, não mostra, agora, nenhuma novidade. É o mesmo céu azul, a mesma tarde de sábado, os mesmos morros e casas. As pessoas vêm e vão tão repetidamente que parecem ser as mesmas pessoas. Apenas silhuetas. O vento que invade a sala, tão envelhecido quanto o tempo. Cotovelo apoiado sobre a mesa, mão apoiando o queixo, fecha os olhos e sente o corpo caindo ao som de uma Fiona Apple de 1996. Alma voltando ao corpo, as coisas guardadas todas de volta em suas devidas gavetas. Concha que se fecha novamente no fundo do mar. A agulha trava no sulco do disco que chega ao fim. Abre os olhos, ainda mergulhada na doce sensação da queda. Agora falta pouco. Muito
pouco para encostar os pés de volta no chão.

"Você me fez um pugilista de sombras, meu bem
Eu quero estar preparado para o que você faz
Eu tenho dado voltas ao meu redor
Porque eu não sei quando você vai dar seu passo... "

"Shadowboxer", Fiona Apple






04 janvier 2007

misery is a butterfly


"Elephant girl
It was an accident unfortunate
Angel threw me like a rubber man
Aiming for the ground
Why amuse yourself in such way
No don’t insist I’m already hurt..."

Blonde Redhead, Elephant Woman

Ele, mais amargo do que o habitual. Palavras tão ácidas que formavam buracos no chão, cada vez que as pronunciava. Do outro lado da cidade, ao telefone, ela procurava reanimá-lo com comentários engraçadinhos. A conversa começara tensa. Mas logo foi tomando outro rumo.
- Você, com esse ar misterioso, deve ter várias garotas chovendo na sua horta.
- Horta? Não. Um cemiteriozinho.
- Cemiteriozinho?
- Um cemitério de elefantes.
- Então não pode ser um cemiteriozinho, precisa ser bem grande.
- É um cemiteriozinho de elefantinhos, de fetinhos de elefante.
- Pobrezinhos. E por que morreram?
- Talvez porque não souberam cuidar muito bem deles. Ou eu mesmo não soube cuidar, o que é mais provável.
- E por que, então, não escolhe um outro animal? Hmm... borboletas! Que tal? Apesar de efêmeras, inspiram liberdade. Borboletas colorindo o céu. Não é mais bonito?
- Eu preferia formigas, daquelas que dizimam tudo pelo caminho. Formigas-correição, conhece?
- Borboletas acho mais bonitas. Imagine criar várias delas? Ter um borboletário!
- Ou um cemitério de borboletas.

03 janvier 2007

o que só os gatos percebem










"You'll rise above the sea of doubts
Into a world full of clouds
Alive..."

Azure Ray, Sea of Doubts


Três dias e três noites que não sai de casa. Sentia um gosto amargo na alma. Sabia bem o porquê. Intuição de alma não falha. Ouve cada palavra, sentindo o coração cortar-se em fatias. Não bastava que lhe podassem as asas? Um final no início de um novo ano. Irreparável? Irreversível? Levanta-se da cadeira encharcada de suor, dirige-se até o banheiro, evitando os olhos da gata. Chora escondendo o rosto na toalha, chora o gosto amargo da alma. Brinca um pouco com a gata, antes de se despedir, inventando um sorriso que não tem. Gatos percebem tudo. Embarca no ônibus, vai para o trabalho engolindo a dor. À tardinha, compras no supermercado. Leite em garrafinhas na promoção. Nescau, pão, café e cigarros. Na parada do ônibus, percebe um céu diferente dos demais. Finge ignorar. Mas logo volta-se para trás, para esse céu cinza, laranja e azul que lhe diz: "sua vida vai desmoronar, vai se reerguer, vai cair de novo, mas é a única que temos para lhe oferecer. Não adianta querer abraçar aquilo que não tem. Olhe para a frente, olhe ao redor de si mesma. Nada é assim tão trágico." Céus ao entardecer dizem coisas estranhas. Embarca no ônibus, entra no apartamento. A gata adormecendo sobre o piano é despertada pelo barulho das sacolas. Abre uma das garrafinhas, oferece-lhe um pouco de leite. Diante do computador, percebe que Azure Ray nem é tão triste assim. E que a vida nem é assim tão trágica. Gatos percebem tudo.

01 janvier 2007

guaraná, cigarros & julie doiron



Tonight is no night for romance
The bus will be leaving soon
And I see clouds in your eyes
But this bus will be leaving soon
And you've got it all
But I am leaving now
And I don't when I'll be coming back...

Julie Doiron, Tonight is No Night

Toma o café da manhã. Bebe um copo de guaraná. Fuma mais um cigarro. Olha pela janela com o olhar vazio. Nada vê de diferente. Apenas os dias tornaram-se insuportavalmente quentes. A cama desarrumada, os livros espalhados. Ontem, vestiu-se para uma festa, mas olhou-se no espelho e viu uma cara de morta. Desistiu. Agora ouve músicas sem parar. Julie Doiron, Azure Ray, Sigur Rós, Ida, The Sundays, Laura Veirs. Talvez, à tarde, leia algumas histórias em quadrinhos. Os cigarros já estão no fim. A gata dorme n'algum canto da casa. Fome? Nenhuma. O vazio que sente é mais do que o suficiente para preenchê-la. Um silêncio estranho paira sobre a cidade. Nada sai do lugar. Nada se move. Estamos em 2007.