08 janvier 2008

O Coração do Dr. Spock


Ainda hoje, lembra das histórias que sua mãe contava. E as imagina assim, em álbuns de fotos antigas dos anos 70. Mães quase sempre inventam histórias que, muito tempo depois, você termina por desmascará-las. Mitos como o do rabo de lagartixa que pode grudar na sua pele. Ou de que o louva-deus é um animal venenoso. Ou de que o pó das asas da mariposa pode torná-lo cego. Talvez a maioria de nossas mães acredite "de pés juntos" (uma expressão típica de mães) que tais ameaças realmente existam. E nós, crianças, vivenciamos um universo cercado de pavor e mistérios. Preparar o ninho para o coelho da páscoa (podia jurar que ouvia rumores de algum coelho que se aproximava) ou dormir antes que o Papai Noel chegasse, faziam parte desse universo.

Lembra que ficava intrigada com uma citação de "O Pequeno Príncipe", no boletim do colégio, em que falava de baobás. Conviveu com essa palavra durante um certo tempo para, enfim, descobrir que baobás, de fato, existiam. Nunca pudera ver um baobá de perto. E muito desolada ficou ao saber, debruçada sobre a Enciclopédia Barsa, que essas árvores monstruosas só existiam na África (perdoem-me aqui, biólogos de plantão, por alguma inverdade. Estou apenas retratando um universo alheio a qualquer rigor científico).

Houve uma vez em que jurou ter visto, à noite, um espírito em seu quarto. Descreveu tudo, roupas que vestia, cor dos cabelos. A mãe, com aquela tranqüilidade que somente as mães sabem ter diante de tais relatos, esclarece o mistério: "Foi uma tia sua que morreu, bem velhinha". E assim ela vivera sua infância: entre verdades inventadas, mentiras desmentidas, revoadas de andorinhas e castelos desmoronados.

Mas, de todas essas histórias, uma, em especial, ela sempre fez questão de preservar. A de que o Dr. Spock de Jornada nas Estrelas tinha um coração mecânico e que, portanto, jamais se apaixonara. Desde então, ela sonhava em ter um coração assim. Jamais se apaixonaria. Pouco lhe importava que tivesse orelhas pontudas, desde que não se apaixonasse. Mas ela nunca teve um coração assim (muito menos orelhas assim). Se apaixonou muitas vezes, sofreu em silêncio, desejou morrer, desistir de tudo. Mesmo depois de adulta, decidiu manter o mistério acerca do coração do Dr. Spock. Se era verdade ou não, que o mistério permanecesse naquele velho álbum de fotos. Hoje, ela prefere acreditar nas palavras que a mãe dissera, diante do desejo da filha, naquela época: "Viver sem se apaixonar? Sua vida não teria o menor sentido".