
"O mundo todo envolvido com o ano novo e você aí, venerando as suas musas...". Verdade, verdade. Sou o ateu mais politeísta que eu conheço...
Esta é a mala de couro que contém a famosa coleção. Reparem nas minhas mãos, vazias. Meus bolsos também estão vazios. Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas. Viro de costas, dou uma volta inteira. Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum alçapão escondido, nem jogos de luz enganadores. Ana Cristina Cesar

 Vou contar para vocês uma história. Uma história sem final. Até porque o final me parece tão óbvio. A história de uma menina que não é lá muito bonita. Na verdade, ela não tem atrativo algum. Há quem a chame de cult ou indie. Isso é por causa dos óculos que usa, além das camisetas de bandas e seus inseparáveis All Star. Ela freqüenta lugares bacanas. Há vezes em que se vê rodeada de gente, indo parar em festas alheias e até arrisca dançar uns Beatles ou mesmo um Cure arranhado que não saía do lugar. Mas sente-se sozinha. Ela ama o cinema, é viciada em livros. O que a leva a ler vários ao mesmo tempo, abandonando muitos pelo caminho feito amantes. Ela acredita que o único lugar no mundo em que sente um pouco de felicidade é a sala escura do cinema, quando a tela se ilumina à sua frente e ninguém a vê. Parece-lhe um mundo imenso, vasto mundo onde tudo vira arte e poesia, mesmo a dor, o sofrimento, o desamor. Hoje ela estava particularmente triste. Assistiu a um filme sozinha, como quase sempre faz. Depois, na parada do ônibus que demorou meia hora para chegar, ela aproveita o tempo a observar pessoas. A faixa de segurança do Iguatemi é a passarela. Nela, desfilam todas aquelas pessoas que parecem ter saído de um comercial. Cheirosas, limpas, atraentes, bem sucedidas, desejadas. Era isso o que ela buscou a vida inteira: ser desejada. Não havia um só olhar na multidão ao redor que buscasse o seu. Seus olhos eram como pássaros desnorteados na noite, sem ter onde pousar. Nas festas, ela pode dançar a noite inteira, mas ninguém a procura. Hoje, no cinema, sentou-se uma mulher ao seu lado. Então ela pôs-se a fantasiar que aquela mulher sentara-se ali de propósito, mexendo os cabelos, e que, a qualquer momento, pegaria na sua mão. Nada disso aconteceu. Ao final da sessão, a mulher permaneceu durante os créditos e, ao se levantar, deixou um papel dentro do porta-copos. Deve ser o número do telefone, pensou, uma cena tão... cinematográfica. Ela respirou fundo, esperou que a mulher se afastasse e olhou disfarçadamente para o papel. Era apenas o ingresso do cinema. Nenhum recado sequer. Embarcou no ônibus com poucos passageiros. Uma menina de cabelos vermelhos à sua frente [ela tem fetiche por cabelos vermelhos] olha fotos num álbum. Um casal de namorados entrelaça os braços. Ela retorna aos contos do Drummond. Não o Carlos. O Roberto. Ela tem tanto sono porque passa as madrugadas ouvindo música e escrevendo. À espera de um telefonema, mesmo sabendo que o telefone, maldito telefone, não irá tocar. Ela chega atrasada ao trabalho porque gosta de ouvir música quando acorda. Hora de enfrentar o mundo outra vez, menina. E a história se repete como um filme. Mas sem espectador.

 Ela sairia às 19h da biblioteca. Fiz as contas e poderia assistir à sessão das cinco. Havia um bocado de tempo livre antes do filme, o suficiente para entrar no sebo e escolher um livro. Ela gostava de Caio, lembrei, depois de procurar inutilmente por Mansfield, Sylvia, Salinger, Woolf, Ana C. [imagino que louco venderia uma dessas preciosidades]. Então o vendedor tira da prateleira empoeirada, um livro velho e amarelado, que deve ter passado por tantas mãos e olhos, deitado em várias camas. Era "Ovelhas Negras", surrado, primeira edição, 15 reais. O vendedor me sugere uma nova edição, limpinha, daquela série de relançamentos, pelo dobro do preço. Parece que os valores não correspondem, pensei. Não pagaria 15 reais por um livro novo... Foi assim que levei o Caio, por acidente. Mais tarde ela me confessa que, no meu lugar, não daria aquele livro de jeito nenhum. Naquele dia ela havia restaurado um "Morangos Mofados". Deve fazer algum sentido.
 Dezembro começou. E o que eu havia pensado sobre ele se foi com a folhinha do mês passado arrancada do calendário. Fui arrancando os novembros espalhados pela casa como pétalas secas. Acredito na maldição do calendário. Que se você não virar as folhinhas ou arrancá-las a tempo, ficará preso ao passado.