30 décembre 2005

musas parte 1











"O mundo todo envolvido com o ano novo e você aí, venerando as suas musas...". Verdade, verdade. Sou o ateu mais politeísta que eu conheço...

derradeiras páginas de 2005



Instruções Para Matar Duília

Comprar um revólver 38, ir para o sítio clandestinamente no fim de semana, exercitar tiro ao alvo, atirar numa boneca como se atirasse em Duília; ter cuidado para a mão não tremer, fazer pontaria, mirar bem o coração de Duília, pedir a Deus:
- Senhor, evitai que eu caia nas tentações de Duília, amém.
Atirar uma vez e duas e três e quatro e cem mil vezes no coração de uma boneca de pano que vai representar Duília, puxar o gatilho, matar Duília e sair cantando e dançando, com a mão cheirando a pólvora, procurar o delegado e se entregar dizendo:
- Acabo de matar Duília com um tiro no coração.
(Os jornais dirão: milionário paulista mata Duília, a que dava nos homens vontade de cantar.)
Treinar tiro ao alvo todo fim de semana, comprar bonecas louras e de olhos verdes como Duília, ter certeza de que não vai errar quando fizer pontaria no coração de Duília, rezar uma Ave Maria pela alma de Duília, pedir a Deus que perdoe os pecados de Duília, coitada, Duília ficou órfã aos 7 anos, viu um pistoleiro armado chegar diante do pai e atirar, era tão pequena, coitadinha, até hoje, aos 23 anos, quando a brisa do Brasil beija e balança a cabeleira fulva de Duília, ela diz:
- É a mão de meu pai me fazendo um cafuné...
(Os jornais dirão: Duília deitava-se no divã de um analista toda tarde de quinta-feira.)
Ter cuidado para não deixar Duília rir; quando Duília ri, senhoras e senhores, alegra o mundo, acaba com os humilhados e ofendidos, e todos cantam e dançam em volta de Duília e anunciam a boa nova:
O Brasil tem jeito! O Brasil tem jeito!
Contar uma história triste a Duília, para Duília chorar (em vez de rir), mas ter cuidado, quando Duília fica triste, ah, a beleza de Duília cresce, e dá na gente uma vontade de ser bom, fazendeiro fica querendo chamar os sem-terra e decretar:
Seja feita a vontade de Duília, reforma agrária já!
Vendo Duília rir, banquei

23 décembre 2005

a menina triste da parada do ônibus que ninguém vê

Vou contar para vocês uma história. Uma história sem final. Até porque o final me parece tão óbvio. A história de uma menina que não é lá muito bonita. Na verdade, ela não tem atrativo algum. Há quem a chame de cult ou indie. Isso é por causa dos óculos que usa, além das camisetas de bandas e seus inseparáveis All Star. Ela freqüenta lugares bacanas. Há vezes em que se vê rodeada de gente, indo parar em festas alheias e até arrisca dançar uns Beatles ou mesmo um Cure arranhado que não saía do lugar. Mas sente-se sozinha. Ela ama o cinema, é viciada em livros. O que a leva a ler vários ao mesmo tempo, abandonando muitos pelo caminho feito amantes. Ela acredita que o único lugar no mundo em que sente um pouco de felicidade é a sala escura do cinema, quando a tela se ilumina à sua frente e ninguém a vê. Parece-lhe um mundo imenso, vasto mundo onde tudo vira arte e poesia, mesmo a dor, o sofrimento, o desamor. Hoje ela estava particularmente triste. Assistiu a um filme sozinha, como quase sempre faz. Depois, na parada do ônibus que demorou meia hora para chegar, ela aproveita o tempo a observar pessoas. A faixa de segurança do Iguatemi é a passarela. Nela, desfilam todas aquelas pessoas que parecem ter saído de um comercial. Cheirosas, limpas, atraentes, bem sucedidas, desejadas. Era isso o que ela buscou a vida inteira: ser desejada. Não havia um só olhar na multidão ao redor que buscasse o seu. Seus olhos eram como pássaros desnorteados na noite, sem ter onde pousar. Nas festas, ela pode dançar a noite inteira, mas ninguém a procura. Hoje, no cinema, sentou-se uma mulher ao seu lado. Então ela pôs-se a fantasiar que aquela mulher sentara-se ali de propósito, mexendo os cabelos, e que, a qualquer momento, pegaria na sua mão. Nada disso aconteceu. Ao final da sessão, a mulher permaneceu durante os créditos e, ao se levantar, deixou um papel dentro do porta-copos. Deve ser o número do telefone, pensou, uma cena tão... cinematográfica. Ela respirou fundo, esperou que a mulher se afastasse e olhou disfarçadamente para o papel. Era apenas o ingresso do cinema. Nenhum recado sequer. Embarcou no ônibus com poucos passageiros. Uma menina de cabelos vermelhos à sua frente [ela tem fetiche por cabelos vermelhos] olha fotos num álbum. Um casal de namorados entrelaça os braços. Ela retorna aos contos do Drummond. Não o Carlos. O Roberto. Ela tem tanto sono porque passa as madrugadas ouvindo música e escrevendo. À espera de um telefonema, mesmo sabendo que o telefone, maldito telefone, não irá tocar. Ela chega atrasada ao trabalho porque gosta de ouvir música quando acorda. Hora de enfrentar o mundo outra vez, menina. E a história se repete como um filme. Mas sem espectador.

stressé, moi?









Toda unanimidade é burra. E os críticos são umas bestas. Li no jornal que o Belle & Sebastian já não causava a mesma sensação, que estava repetindo as mesmas fórmulas e tralalá. Então, por que será que, ouvindo Dear Catastrophe Waitress, que é de 2003, eles parecem melhores que antes? Até a capa é a mais bela de todas. Também, como não haveria de ser, com uma menina de cabelos curtos usando uma camiseta com dizeres em francês? É um dos CDs mais bonitos que já ouvi e o Belle & Sebastian continua me cativando. Repetitivo mesmo só o discurso chato da crítica.

13 décembre 2005

ovelhas negras mofadas

Ela sairia às 19h da biblioteca. Fiz as contas e poderia assistir à sessão das cinco. Havia um bocado de tempo livre antes do filme, o suficiente para entrar no sebo e escolher um livro. Ela gostava de Caio, lembrei, depois de procurar inutilmente por Mansfield, Sylvia, Salinger, Woolf, Ana C. [imagino que louco venderia uma dessas preciosidades]. Então o vendedor tira da prateleira empoeirada, um livro velho e amarelado, que deve ter passado por tantas mãos e olhos, deitado em várias camas. Era "Ovelhas Negras", surrado, primeira edição, 15 reais. O vendedor me sugere uma nova edição, limpinha, daquela série de relançamentos, pelo dobro do preço. Parece que os valores não correspondem, pensei. Não pagaria 15 reais por um livro novo... Foi assim que levei o Caio, por acidente. Mais tarde ela me confessa que, no meu lugar, não daria aquele livro de jeito nenhum. Naquele dia ela havia restaurado um "Morangos Mofados". Deve fazer algum sentido.

10 décembre 2005

Dezembro

Dezembro começou. E o que eu havia pensado sobre ele se foi com a folhinha do mês passado arrancada do calendário. Fui arrancando os novembros espalhados pela casa como pétalas secas. Acredito na maldição do calendário. Que se você não virar as folhinhas ou arrancá-las a tempo, ficará preso ao passado.
Do dia 1º de dezembro, lembro que “Unravel” da Björk surgiu na minha cabeça de manhã, mesmo depois de ouvir ininterruptamente os cinco CDs dos Cardigans espalhados pelo quarto. Lembro que desejava ter escrito sobre o mês de dezembro e ia sugerir que você também escrevesse. Imagino que deve haver dezenas de músicas, contos e poemas com esse nome. Mês em que as pessoas se deprimem, fazem balanços de suas vidas, listinhas, flashbacks, exorcizam o passado. Tem aquelas que viajam, carregando tudo o que podem, como se estivessem fugindo. Mas quem pode escapar? Dezembro é um grande golpe psicológico. É o último mês, a última cartada do ano. Eu, que já vi 37 deles, sobrevivi a todos. Talvez o segredo seja não fazer balanço algum. Apenas esperar que a tempestade se dissipe. E, ao final de tudo, abrir a janela, ver os estragos que ficaram ao redor da casa e pensar consigo mesmo: "ufa, essa foi por pouco..."

09 décembre 2005

**De Como Vim a Tornar-me um Mediador da Bienal ou Das Vezes Em Que Escrevo Certinho...



"Ser mediador era um sonho antigo. Eu já flertava com a Bienal do Mercosul desde a sua 2ª edição. Ficava maravilhado com a diversidade de manifestações, embora entendesse pouca coisa. A Bienal, a meu ver, é uma celebração. É quando Porto Alegre respira e vive arte. Tudo o que, para certos "especialistas" como Martha Medeiros, poderia ser rotulado como ferro retorcido e outras asneiras, era para mim, o desejo de se dizer algo quando faltam palavras. Assim, segui alimentando esse amor platônico. A cada dois anos, me imaginava fazendo parte dela. Não bastava ser espectador. Eu queria estar lá, do outro lado, em contato direto com as obras, os artistas, os bastidores, a equipe. A oportunidade surgiu na 5ª Bienal. Me inscrevi – honrando nossas tradições – no último dia, numa sexta-feira à tardinha. Mandei currículo, carta de intenções... numa corrida contra o tempo. Na semana seguinte, a notícia de que eu havia sido um dos selecionados. Depois, aquele curso que mudou bastante a minha maneira de ver e pensar arte e o mundo ao meu redor. A tensão entre os questionários, quando eu pensava que seria eliminado no meio do caminho. Percebia que os candidatos estavam tensos também. Finalmente divulgam a lista e o amor pela Bienal passou a ser correspondido. Agora eu era um mediador. Mediador? Mas que diabos faz um mediador? Até então, eu me imaginava como um monitor, tomando conta das obras e sorrindo para o público. Nada disso. Eu mediaria grupos. De diferentes faixas etárias, escolaridade, classes sociais. Um poço de timidez lidando diretamente com pessoas, conversando sobre arte, obras e artistas. Tarde demais para desistir. Fiquei feliz quando soube que trabalharia no MARGS, um museu pelo qual tenho um imenso carinho, e estaria diante de obras históricas dos anos 50 em diante. Dias antes do início da Bienal eu conhecia poucos artistas. Começamos nossas pesquisas, enquanto a ansiedade só aumentava. Finalmente, o enfrentamento. O início da Bienal. Dezenas de grupos agendados à nossa espera. Primeira mediação: grupo de taxistas de um curso de turismo. Muitos nunca haviam entrado no MARGS. Eles olhavam admirados para a imponência do prédio que quase ofuscava as obras. Queriam saber mais sobre o MARGS do que a respeito da Bienal e as obras ali expostas. Percebi, então, que haveria, sim, públicos muito heterogêneos. Que eu aprenderia muito com eles também, que estaria diante das mais diversas e inesperadas opiniões e reações. Conversei muito com os colegas mediadores a respeito dos artistas e do período em que estes viveram. Foram diferentes olhares, todos extremamente interessantes e enriquecedores. Mediadores que cursavam Arquitetura, Artes, História, Letras... tornaram-se amigos. No meio de tanta correria para cumprir horários e realizar mediações, descobríamos afinidades que a arte nos proporcionou. O cansaço era superado pelas conversas, mesas de bar, "horas felizes" e até piqueniques. E ouvíamos cada uma. Tantas histórias acabaram sendo registradas no "livro de causos". Merecia ser publicado. Acredito que poucos mediadores não foram confundidos como o "dono da obra" ou como o próprio autor. Eu mesmo já fui autor das obras cinéticas da Matilde Perez ou dono dos desenhos do Amilcar de Castro. De uma certa forma, nos sentimos responsáveis, após convivermos diariamente com elas, conversando a respeito com o público, pesquisando sobre cada artista. Nos tornamos íntimos, meio cúmplices até. Barcala, por exemplo, conquistou vários admiradores. Mira Schendell fascina com suas obras e vida praticamente desconhecidas por tantos.
Presenciei visitas realizadas em frações de segundo, outras que ficavam horas diante de um único trabalho do Waldemar Cordeiro. Gente que xingava que "aquilo não era arte", que o filho fazia igual, que não penduraria "aquilo" na parede. Pessoas que queriam tocar nas obras, outras que só queriam usar o reflexo para arrumar o cabelo. Vi também olhares brilhando fascinados, pessoas surpresas, chocadas, curiosas, desconfiadas, questionando o que é arte. Gente que perdeu o medo de ver arte de perto.
Ouvíamos de tudo, mas gostaria de ouvir muito mais. As pessoas ainda têm medo de se expressar, de opinar.
Acredito que toda essa experiência não termina com o encerramento da 5ª Bienal. Muito do que aprendemos terá continuidade de alguma forma. Seja numa simples conversa, na área em que atuamos, nos estudos, em diversas atividades que possamos desenvolver. O vírus da arte ficou incubado em nós."
**Texto-depoimento escrito para a Bienal

29 novembre 2005

no dia em que eddie vedder esteve em porto alegre...



Dani, eu não precisei pedir. Eddie cantou Daughter e eu fiquei pensando em você, como se você estivesse no show. Ele cantou Jeremy e tantas outras, dessas que habitavam a minha vida e que já estavam gravadas há muito tempo na memória. Ouvi a voz dele de perto, todas aquelas músicas tocadas à enésima potência, cantadas naquele único e exato momento. Uma noite sufocante, onde um copo d'água valia três reais e o público estava exaltadíssimo. Strokes pareceu uma festinha de aniversário. Mudhoney pôs abaixo qualquer esperança de ordem, era o caos antecipando a longa espera desde que Ten aparecia por aqui. Escrevendo assim, tão toscamente, fica a impressão de que vivi um daqueles momentos delirantes, onde poderia lhe jurar que estive presente num show do Pearl Jam. Eddie Vedder a poucos metros dali, celebrando o momento com uma garrafa de vinho. Talvez aqueles que um dia viram Jim Morrisson ou Robert Plant nos tempos do Led Zeppelin pudessem explicar melhor. Não há palavras que traduzam. E você me entende. A nossa relação com a música, esse vício que compartilhamos, cada qual à sua maneira, talvez só mesmo a própria música para traduzir. Estou ligeiramente paralisado, ainda não estou acreditando.

26 novembre 2005

uma citação



Two Womens Reading,
por Sylvia Plath







"a arte de escrever histórias consiste em saber extrair daquele nada que se entendeu da vida todo o resto; mas, concluída a página, retoma-se a vida, e nos damos conta de que aquilo que sabíamos é realmente nada."

[Italo Calvino in "O Cavaleiro Inexistente"]

Isto é para quem havia dito que escrevia mal [e escreve maravilhosamente bem, quando quer]. Para quem disse que começaria a escrever algo decente [quando eu preferia algo indecente]. Para quem escreveu uma vida inteira em cadernos [e jogou tudo "no mato", como prova de amor]. Para quem escreve cartas com mais de 40 páginas. Para quem escreve poemas nas paredes do apartamento e entrega cartas pessoalmente. Para quem escreve e finge que não [no meu caso, eu finjo que escrevo]. Para quem acha que nunca aprenderá nada com a vida, mas continua insistindo. Que insistam sempre "na maldade de escrever".

24 novembre 2005

um poema



Tão somente um gesto
E não o fiz.
Que muitos houvessem tentado,
Apenas eu resisti.

Homens que marcham, que se deixam levar,
Porque vivem.
Estranho guerreiro, eu não marcho.
Corpo morto, já não me carrego.

À frente de cem milhas agrestes,
Como se contra o nada, respondi:
- Estou aqui e aqui perduro.
Isto que hoje fala em mim, em mim se cala.

Mariana Ianelli, "Voz de Ninguém"

23 novembre 2005

meia hora no metrô



Não encontro
no meio de todas essas histórias
nenhuma que seja a minha.
Nenhum desses temas me consola.
Espero ardentemente que me telefonem.
Espero que a chuva pare e os trens voltem a circular...

Ana C.

A menina em pé no metrô com um pesado livro do Dostoiévski [ela só queria ler O Jogador, que estava num dos volumes das Obras Completas], um do Italo Calvino e alguns xerox sobre arte concreta e existencialismo, olha para a moça sentada à sua frente. Nela, vê os ingredientes para idealizar alguém: cabelos curtos e pretos, magra, pele muito branca, blusa vermelha com mangas curtas quase na altura dos ombros, sentada no banco próximo à janela. Apoiado à sua frente, um instrumento musical protegido por um estojo. Poderia ser um violão, mas ela diria que é uma guitarra pela sofisticação do estojo. Olha para suas mãos e as unhas da mão direita são mais compridas. Uma violonista clássica? Imaginou que poderia ser uma violoncelista. Que, pelas formas dos dedos das mãos, poderia ter pés bem atraentes. Limitava-se a admirá-la de longe. No terreno das idéias, as chances de se ferir podem ser menores. Já não haviam lhe dito que "não ter é a melhor forma de não perder"? Pois assim ela seguiu pensando, até desembarcar na mesma estação de sempre, atrasada como sempre e acreditando, como sempre, que encontraria novamente a mesma menina de cabelos curtos pretos em algum lugar da cidade. Porque isso lhe acontecia com uma certa freqüência que ela não sabia explicar. Quando fixava-se em alguém, quase sempre reencontrava essa pessoa. Quase sempre.

19 novembre 2005

SERENATA SINTÉTICA

Rua
torta.

Lua
morta.

Tua
porta.

Cassiano Ricardo

You're the Storm



"I don't know
how to connect
So I disconnect
I disconnect..."

"please sister help me, I just need
some love to
live
just a little love to live..."

Oh, está curando bang, bang, bang
Eu posso ouvir a chamada de seus canhões
Você está visando minha terra
Seu faminto martelo está caindo
E se você me quer, sou seu país

Sou um anjo infernalmente entediado
E você é um diabo intentando o bem
Vovê se infiltra em meus domínios e me golpeia
Vem e ergue sua bandeira sobre mim
E se você me quer, sou seu país
Se você me vencer, sou eternamente, oh yeah

Porque você é a tempestade em que acreditei
E toda essa paz tem sido ilusória
Gosto da doce vida e do silêncio
Mas esta é a tempestade em que acreditei

Venha e conquiste, recolha seus ossos
Cruze minhas fronteiras e mate a calma
Enterre suas coisas e queime meus ventos
Eu ouço balas cantando

Porque você é a tempestade em que acreditei
E toda esta paz tem sido ilusória
Preciso de algum vento para me fazer navegar
Então é nessa tempestade que acreditei

Você enche meu coração, você me mantém respirando...

Sel, tomei a liberdade e publiquei sua tradução. Cardigans é literatura cantada. Uma cantada literária.
Merci.


18 novembre 2005

efeito cardigans



Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.

E então serás eterno.

Cecília Meireles, Cânticos VI

O que somos além de memórias que vão-se apagando... O que deram os nomes de alma ou espírito são apenas lampejos de consciência que, algum dia, irrecuperavelmente, desaparecerão. Todas as nossas experiências fracassadas ou não, momentos felizes ou amargos, tudo o que carregamos dentro de nós, nossos sentimentos terão se extinguido, como uma fogueirinha no meio da neve. Teremos literalmente desaparecido. Durante o percurso, muito provavelmente não teremos alcançado o que tanto almejávamos. Talvez tenhamos caminhado uma infinidade de quilômetros e, no meio dele, já teremos esquecido o que era mesmo o que tanto queríamos. E lá teremos ido nós, com nossos amores, desejos, ideais, músicas, filmes, os rostos que não queríamos nunca esquecer. E os livros. Ah, os livros! Tudo se dissolvendo como as imagens de um álbum de fotografia que vamos folheando, os momentos ali congelados em olhares e gestos petrificados. Pensava nisso enquanto ouvia Cardigans e suas músicas carregadas de melancolia, a voz doce da Nina Persson misturando-se à leitura de Gorki, acreditam? Ler Gorki é estar disposto a cair num universo mergulhado em desolação. Nada além do nosso próprio universo, o real [o que é real?], sem maquiagens ou embalagens. Bem provável que eu tenha saído de casa depois disso, deixando o rascunho a lápis. A voz de Nina ecoando sob o calor abafado de um feriado. O calor que você [diz] odeia com todas as suas forças.

12 novembre 2005

Rosiana

Do livro que você me mostrou - lembra? - na Feira do Livro e que eu achei na biblioteca: Rosiana: Uma coletânea de conceitos, máximas e brocados de Guimarães Rosa:

"... a alegria não é sem seus próprios perigos."

"... quem ama é sempre muito escravo, mas não obedece nunca de verdade."

"... pensar na pessoa que se ama, é como querer ficar à beira d'água esperando que o riacho, alguma hora, pousoso esbarre de correr."

"... só sabemos de nós mesmos com muita confusão."

"... a gente cresce sempre, sem saber para onde."

"... através dos espelhos parece que o tempo muda de direção e de velocidade."

"... os olhos... são a porta do engano."

"... os olhos da gente não têm fim."

"Nenhuns olhos têm fundo; a vida, também, não."

"... o mais fundo de meus pensamentos não entende minhas palavras."

"... os sonhos são ainda rabiscos de crianças desatordoadas."

07 novembre 2005

Do meu atual livro de cabeceira



"Ainda não gostei de nenhum dia,
mas não desisti de procurar a felicidade."

Jane Bowles

Amém, Mrs. Bowles, amém...

05 novembre 2005

Fuck Off Is Not The Only Thing You Have To Show

Engraçado como a vida, ao menor desvio na sua trajetória, consegue nos surpreender com uma série de imprevistos. É bem provável que eu venha a esquecer que esse fato ocorreu no dia 4 de novembro de 2005, na noite em que não fui à aula para revirar os balaios da feira do livro. Mas certamente me lembrarei que foi, nessa mesma noite em que a feira ficou praticamente submersa e vi o subsolo do Santander Cultural invadido por uma correnteza, lembrando cenas de “O Iluminado”, que resgatei de um balaio empoeirado da barraquinha da Mosaico, um determinado livro de uma certa escritora: Jane Bowles. Pistas do que viria a ser uma descoberta e tanto: tradução de Lya Luft, apresentação de Truman Capote, somado ao fato de ser, oh yea, uma escritora e ter uma vida atormentada. E o que dizer do título? “Duas Damas bem Comportadas”. Ah, sim, lembrança imediata de uma determinada pessoa. Mas esqueçamos a tal lembrança. Afinal, tornei-me por esses dias o que eu definiria como uma pessoa fria e distante. Embora eu deseje profundamente ficar conversando por horas sem fim ao telefone, apenas com poucas pessoas, obviamente. Creio ser o momento de retomar Katherine M. Retornar às escritoras. Leio Ítalo Calvino e Dostoiéski aguardando na fila das leituras acadêmicas. Mas ninguém que se compare a elas. Vi Emily D. por 5 reais, Gisa, na barraquinha da Mercado Aberto, onde comprei cinco livrinhos de bolso por 2 reais: Machado de Assis, Cesário Verde, Roberto Drummond e Qorpo Santo. Vi Clarice a 6. A grande liquidação, senhoras e senhores, é o que me parece. Preciosidades sob a poeira do descaso. As pessoas não lêem, os livros encalham, os escritores desaparecem no silêncio das máquinas de escrever. Tenho ouvido Arcade Fire, com menos freqüência com que ouço CSS. É o meu topefaive do momento:

1. Let’s make love and listen death from above, CSS
2. Rebellion [Lies], Arcade Fire
3. The Back of the Shell, The Kills
4. Rodeo Town, The Kills
5. In the Backseat, Arcade Fire

Mas o melhor título para uma música eu elegeria Fuck Off Is Not The Only Thing You Have To Show... Isso é também CSS [estaria a bienal me deixando burro?].

P.S.Ainda estou decifrando o conteúdo da caixa. Não fique magoada, ok?

29 octobre 2005

F For Fake


Fiz misérias nos caminhos do conhecer.
Mas hoje estou doente de tanta estupidez
porque espero ardentemente que alguma coisa... divina aconteça."

Ana C. in "A Teus Pés"


Melancolia a mil por hora na direção contrária da manhã que se arrasta. CD do Sigur Rós. Paredes quebrando e sol gelado. Leio Ana C. às nove da manhã. The Strokes agora parecem meio tristes. Músicas para se dançar chorando, com os olhos fechados. E sorrindo. Mansfield me chega em momento difícil.

25 octobre 2005

Kurt no Shopping

Sou o país miserável recebendo ajuda tardia sob a forma de uma caixa imensa. Kurt Cobain no shopping sem querer consumir nada. Meu país todo ocupado e os desejos morrendo de fome. A ficha foi lentamente caindo, num tilintar estilhaçador. Uma implosão, uma explosão, uma dor violenta de estômago no coração. Tudo tem gosto de última ceia, atravessada na garganta, misturada às lágrimas que não vêm. Me prendo a seus pés, às pernas, seguro suas mãos. Mas sou incapaz de prender seu coração. Veio ajuda de longe, com kits de primeiros socorros: as mais belas músicas, as mais belas cartas, K. Mansfield, Ovídio, letras de músicas, moedas de ouro... Uma oferenda aos deuses do Olimpo. Mas o paciente não se encontra em condições de receber visitas. Seu estado é crítico. Reage apenas às músicas do Interpol e do Arcade Fire. Hoje avistei a cidade, do alto da passarela. Parecia um brinquedo que perdeu a graça. Meus allstar verdes não hesitariam em saltar dali. Hoje é uma segunda-feira e as pessoas me encorajam a ter medo delas.

22 octobre 2005

La Fille sur le pont

Vanessa Paradis em La Fille sur le pont [A mulher e O Atirador de Facas], de Patrice Leconte.

Preciso rever esse filme, preciso!

21 octobre 2005

Inquietações WoolfiANAs



Silêncio de resposta e sangue ainda
os vidros soltos sobre a cara
mesmo sem saber que retornamos
saibamos que o espelho que desaba
fere e contunde nossa cara...
Ana C.

Toda vez que eu a via, lá estava ela, compenetrada, olhando para o próprio polegar, sem entender o que havia nele. Era algo que a machucava, embora ela não demonstrasse. Ficava ali, querendo livrar-se daquele incômodo. Às vezes eu pensava que roía as unhas, mas era para o polegar que ela dava atenção. Antes ou depois da sessão de cinema, ela olhava para o polegar. No meio da pista - lotada - de dança, ela parava, olhando para o polegar. Afinal, esse incômodo havia se transformado num indecifrável mistério. Até que, finalmente, naquela fria manhã, ela parecia decidida a livrar-se daquilo. Na mesa do café, sob a luminosidade cinzenta de uma segunda-feira, ela tentou com uma pinça, sem sucesso. Pegou uma agulha de costura, sentou-se diante de mim e, muito calmamente, retirou do polegar o motivo de todo o enigma: sobre a ponta da agulha, um caco de vidro, uma minúscula e brilhante partícula da qual ela, finalmente, se livrara. Seria um pedaço de espelho no dedo? Nada incomum para quem escreve poesias nas paredes do apartamento e faz mousse de maracujá de madrugada.

fragmentos

"Quase analfabeto de si mesmo,
Sem vocabulário suficiente
para explicar-se sequer a um espelho..."
Caio F.

E porque parece que certas - ou todas - as coisas nos levam a outras. E porque, após horas de indecisão, algo - ou alguém, óbvio - me trouxe até aqui e encontrei esses fragmentos do Caio. Querendo, no momento em que os lia, escrever como ele. Caio com Cake ao fundo, de manhã. A preciosidade desses momentos é que faz a diferença. A idéia do que poderia ser uma vida perfeita. Literatura literalmente colada pelas paredes, portas, janelas, na porta da geladeira. Marilyn na parede ["Marlene on the wall...", Suzanne Vega]. Naquele sábado que parecia o dia que você escolheria para guardar numa redoma, como um peixe raro. Agora enxergo, retorno ao fio da meada para deixá-lo escapar intencionalmente. Não é mesmo para ter sentido ou explicação. São esses os momentos em que me descomplico.

20 octobre 2005

notas de uma segunda-feira que já morreu


"Quem ama o abismo, precisa ter asas..."

Só agora, quando a festa acabou, as luzes se apagaram e as músicas cessaram de tocar, só restando uma ligeira e amarga ressaca e um zumbido insistente nos ouvidos, só agora é que percebo, nesse sono que me parte entre o real e a diluição, que estava dentro de um barco afundando sem música ao fundo [estrelas no fundo do poço, Mrs. Plath?]. O sol de segunda-feira, embora tímido e preguiçoso de manhã, atravessa a janela do ônibus, derretendo meus sentidos. Houve uma vez em que desceu um daqueles anjos que ilustram as bíblias sagradas e sentenciou com seu linguajar solene: "terás o direito de amar apenas o impossível. Quanto mais intenso o amor, maior a impossibilidade". Desde então, há esse intransponível e vertiginoso abismo bem diante dos meus pés. "Amarás o abismo", disse o anjo. "Quanto maior o amor, maior o abismo". Dentro dele, o barco afundando. Afundando no ar.

08 septembre 2005

Wafers com Paul Auster



Leio Paul Auster pela primeira vez, mas é ainda cedo demais para esboçar qualquer impressão. Embora o que já li fosse o suficiente para me instigar a ler páginas e mais páginas. Ele simplesmente jogou, ao que me parece, toda a sua vida, seus primeiros passos, dentro daquele livro ["Da Mão Para a Boca"]. Território estranho esse, em que caminho como que numa calçada escorregadia. Literatura masculina, isso existe? Mesmo nesse terreno desconhecido, me sinto quase retornando ao mundo dos vivos. Uma breve passagem, uma pequena visita, meu olhar pela janela entreaberta. Mas isso não me entusiasma nem um pouco. Cultivar relacionamentos tão consistentes quanto um copo de leite desnatado, sabendo de antemão que nada disso terá a menor chance de sobreviver.
Domingo fui a um show no Garagem Hermética, num horário inacreditável, 19 horas. Lá estava eu, na mesinha-atrás-da-mesa-de-som, munido do livro do Auster e uma trilha sonora bem interessante, com vozes femininas [só reconheci Breeders]. Bastante gente, que se comportava como se estivesse numa sexta à noite. Com uma hora e meia de atraso, uma das piores bandas que poderiam pisar sobre aquele palco: Sem Sentido, três pirralhos e um vocal insuportável, inacreditavelmente desafinado, algo como um CPM 22, ainda piores. Vontade de sair correndo, mas algo me dizia para fazer justiça àquele um real e ao quilo de farinha que, juram, contribuirá para aplacar a fome de alguém. Mini Band foi uma espécie de antídoto, três caras que tocavam, de verdade, um psychobilly interessante. O baixista parecia vir de alguma banda perdida nos anos 60, confortavelmente deslocado entre os outros dois, que usavam cabelo curto e estavam bem animados. Então, chega o grande momento da noite, a banda Wafers. Baixista estilosa, vestidinho preto com bolinhas brancas, óculos de armação preta. "Pronto", pensei, "mais uma banda fofinha com vocais etéreos e guitarras distorcidas". Pois os três começam a tocar covers impecáveis de Sonic Youth. Meus olhos voltaram a brilhar. Saí da mesinha escondida para conferir de perto aquela banda simples e muito competente. Quem poderia acreditar que, naquela noite perdida de um domingo, no palco de um bar em Porto Alegre, haveria uma banda perfeita tocando brilhantemente vários Sonic Youth e Pavement? Com direito a Carlinhos da Bidê ou Balde subindo meio bêbado e ensandecido no palco pra dividir os vocais? No final, só me restava contar os trocados que eu não tinha e levar o CD dessa banda maravilhosa. Wafers é a melhor banda do mundo nas próximas horas.

31 août 2005

I see dead cats...

Hoje vi o quarto gato morto nas imediações onde trabalho. Era um gato preto e branco, na divisa que separa uma das três pistas da perimetral. Atropelado? Difícil imaginar um gato sendo atropelado. Mas os motoristas já adquiriram há muito tempo essa habilidade. Não satisfeitos em atropelar humanos, cachorros e cavalos, eles atropelam gatos. Mas os outros que vi - todos no mês de agosto, se bem me lembro - não aparentavam ter sinais de atropelamento. Primeiro, foram dois gatos, meio gordos. Um ruivo, o outro branco. Vistos mortos na mesma manhã. Depois, foi um gato preto, numas daquelas desabaladas tempestades, em cima da grama em frente ao Jardim Botânico, nas proximidades da encruzilhada dos despachos. No dia seguinte, foi esse, preto e branco, que uma senhora caridosa fez a gentileza de retirar do acostamento, num modesto funeral. Quatro gatos encontrados mortos de manhã. Uma chacina. Um gatocídio. Me lembrei dos quadrinhos dos ratinhos judeus dominados pelos gatos nazistas no premiado "Maus". Talvez fosse uma tardia vingança. Os ratinhos tomaram, enfim, o poder. Mas não. Isso é coisa dos humanos. Querendo varrer da face da terra tudo o que os importuna: árvores, cachorros, gatos, índios, pobres, homossexuais, negros, estrangeiros. Tudo que atravanque o caminho deles. É assim que os homens cometem seus pequenos holocaustos todos os dias. Mas voltemos aos gatos [nada contra os cachorros. Eles são simpáticos, bonitos e inteligentes. O único defeito deles é que deixam-se levar facilmente pelos humanos. Gatos, não. São eles que nos trapaceiam]. Coincidência ou não, na noite do dia do gato preto morto, o que vi na minha rua, a caminho de casa, foi um gato preto. Vivo. E mais outros gatos, todos vivos. Desde então, toda vez que me deparo com gatos mortos na rua, eu os procuro vivos, à noite. Como se eles fossem mesmo capazes de trapacear até a morte. E viver suas sete, entre muitas vidas.

30 août 2005

nine million rainy days



Dias de chuva interminável e eu penso que não precisamos ver esses dias assim, tão cinzentos. De manhã, eu via a cidade passando pela janela do metrô, o céu escuro, mas as coisas brilhavam e as cores eram mais vivas, como se tivessem sido lavadas. Tudo lá fora parecia limpo, o que é uma grande mentira. Mas finjamos um pouco, afinal aqui é o meu mundo de ficção [o mais verdadeiro que eu conheço]. Cedo demais para sonhar, mas as mãos eram reais, o rosto real e os olhos e o sorriso que falam, brilhando, bem diante de mim. Nunca vi isso antes. Um silêncio que brilha, debaixo do guarda-chuva. O pianinho de Belle & Sebastian fazendo a trilha sonora que não sai da cabeça. Qual era mesmo o significado da expressão "chovendo cães e gatos"? Nota-se que fiquei desorientado.

17 août 2005

Spielberg e os brincos de argola

Deve haver uma explicação psicológica para que alguém se esconda por trás de certos artifícios. E olha que tem gente que abusa. Na minha frente no ônibus de manhã: uma loira falsa, de cabelos falsamente lisos, pele artificialmente bronzeada e fazendo aqueles malabarismos com o cabelo numa súplica desesperada por atenção. "Vocês precisam me ver, olhem como sou maravilhosa, que cabelos, que pele!". Olhei para a janela do ônibus, pensando: "Só falta um item, aquele mesmo, os abomináveis e indefectíveis brincos de argola". Me contive por um instante, me recriminando: " Não seja tão preconceituoso, ela não usa brincos de argola, não julgue as pessoas pela aparência". Então virei-me novamente para me certificar. E eles estavam ali, os brincos de argola, imensos, redundantes, ameaçadores, fulminando qualquer possibildade de perdão pelas atrocidades humanas. A ânsia de vômito da véspera, após a sessão de "Guerra dos Mundos", veio à tona. A previsibilidade sempre me surpreende.

09 août 2005

Leis da Física

Hoje mesmo eu pensava [ou era a idéia de um pensamento, aqueles lampejos...] - olhando pela janela do ônibus a cidade pegajosa de umidade e frio - que não escrevo aqui há um bom tempo. Mas não que eu não tenha escrito, porque já escrevi um bocado de cartas por esses dias. Está quase tudo nelas, aos fragmentos. Tenho cartas que não enviei, tem cartas em envelopes, tem cartas incompletas, cartas fora do baralho, cartas na manga. Confesso que estou mergulhado em completo silêncio. Meus pensamentos são folhas de papel em branco. Uma paralisia que, à primeira vista, até poderia se assemelhar a alguma espécie de transe ou contemplação. Mas não é nada disso. Essa paralisia silenciosa é universalmente conhecida como inércia.

25 juillet 2005

top top ten para um domingo [ou as músicas que não desgrudam e que aparecem ao acaso]



1. Libertines - Tell the King
2. Sonic Youth - Pattern Recognition
3. Radiohead - Thinking About You
4. Cardigans - You're the Storm
5. Air - Sexy Boy
6. Hole - Rock Star
7. Beck - Jack-Ass
8. Snow Patrol - Gleaming Auction
9. Belle & Sebastian - Expectations
10. T.a.t.u. - 30 Minutes

death on the stairs

please kill me no don't
kill me...


Demorei um pouco para assimilar esses Libertines. Eu, que a princípio, às primeiras audições, via-os apenas como mais uma bandinha blasé que toca e canta muito mal um roquenrolzinho pretensioso e fútil, agora passo a considerá-los como uns strokes dementes, uns strokes que beberam além da conta, ou o que o Franz Ferdinand gostaria de saber fazer. Os Libertines são daquelas bandas que não passarão do terceiro disco. Portanto, importa que sejam ouvidos [mesmo que toquem e cantem muito mal], até o último e fatal acorde [o espírito roquenroll agonizante]. Quem nasceu para viver muito, vive pouco. Para que haveríamos de desejar mais?

22 juillet 2005

electric honey records

"Nós buscamos outras realidades porque não sabemos como desfrutar da nossa; e saímos de dentro de nós mesmos pelo desejo de saber como é o nosso interior."

Montaigne


Acho que os pensamentos, as idéias, são como saliva, como veneno de cobra, vão se renovando aos poucos. Não que eu possa chamar de hiato criativo essas pausas em que fico sem escrever nada que ultrapasse uma frase pedantemente medíocre. Também não poderia chamar, as fases em que escrevo, de momentos de criatividade. Se ao menos eu fosse capaz de escrever uma ínfima parte do que o Raduan Nassar escreve! As frases dele ficam ressoando na minha cabeça, levo semanas pra digerir. E os pensamentos vêm e vão com uma facilidade espantosa. Reluto em levantar da cama, afinal já passa da meia-noite, faz frio e chove. Mas as palavras ficam pipocando, com Belle & Sebastian como trilha sonora. Uma possibilidade renovou meus restos de esperança [meio assim, como restos de nescafé] no fundo da lata. Posso ter, diante de mim, uma maquininha de escrever, e verde, como aquela do Erico Verissimo. Mesmo que não passe de um amontoado de plástico e metal, é disso que eu vivo, é assim que sobrevivo. De romantizar as pequenas coisas. Se tratarmos tudo como banal e sem valor [o que na verdade são as coisas, momentos, pessoas, sentimentos, numa análise bem realista], sobrará o quê? E também não venero às cegas, não é uma idolatria desmedida a ponto de ver rostos de santos numa vidraça encardida. Mesmo que tudo seja mentira [o que na verdade é], uma propaganda enganosa, gosto do que escrevem. Vivo disso também. Não estou em busca de nenhuma santidade, até porque elas não existem, todo mundo sabe. "Made by Electric Honey Records". Eu nem havia me dado conta até esse momento de que "this is the first record by Belle & Sebastian. They're called it 'Tigermilk'". E o sono se mistura com a noite, os pensamentos se diluem com a chuva. Depois que eu cerrar os olhos, adeus, pensamentos. Todos eles estarão irrecuperavelmente perdidos.

14 juillet 2005

Conflito

"I'm going hunting
I'm the hunter...
(you just didn't know me!)
(you just didn't know me!)..."
[Hunter, Björk]

Há uma guerra declarada aqui bem perto. Uma guerra sangrenta onde os inimigos são seus próprios habitantes. Isolaram inteiramente suas fronteiras porque não admitiriam interferências. Não há mais munição alguma. Suas armas são o que encontram pelo caminho. Olhando ao redor, a imagem é de uma desolação sem fim: escombros, sangue, corpos mutilados. Não se sabe precisamente como tudo começou, nem o real motivo - se é que há - desse conflito. Sabe-se apenas que lutam aos prantos, até esvairem-se suas forças, sucumbindo nas mãos de um inimigo imaginário. Morrem de desgosto, de cansaço. Deixam-se morrer na esperança de abreviar todo esse sofrimento. Aos que sobrevivem, não resta alimento ou água. Os mais renomados especialistas bélicos descartam qualquer possibilidade de pacificação. Segundo eles, a previsão é de que não haja sobreviventes. A ONU, por sua vez, lavou [como de hábito] as mãos, alegando ser uma região de difícil acesso. "Nada podemos fazer", afirmou o porta-voz. "Esta é uma guerra interior."

13 juillet 2005

intervenção cirúrgica


"Podias parar meu coração
e transplantá-lo para teu aquário...


Carpinejar

12 juillet 2005

Por que Audrey Hepburn?

Olha que eu procurei palavras, me dispersei. Disseram que nem falo de mim, só dos livros. Mas porque sou apenas isso, tenho sido esses fragmentos. Ando espalhado pela estantes, pelos CDs arranhados, pela poeira entre as páginas e restos de conversa. Podem me encontrar no fundo da xícara de café, nas moedas sobre a mesa, no último metrô. Buscando não sei o quê em máquinas de escrever, em bicos-de-pena para escrita gótica, em cartas que, nem sempre, chegam a algum destino. Comprei uma foto de Audrey Hepburn que achei tão bonita, como se viesse de algum paraíso perdido. Está num porta-retrato agora, sobre a cabeceira da cama. Deve ser isso, a busca inútil por um paraíso. Quando olho para o retrato, eu quase acredito.

11 juillet 2005

Execução

A ação daqueles homens contradiz o bom tempo. Era um sábado ensolarado, numa dessas manhãs em que as pessoas tornam-se afoitas feito formigas diante do açucareiro. Cheguei no final do espetáculo. A praça de linchamento isolada pela prefeitura com um emaranhado de fitas amarelas e pretas, cercando as vítimas. E os curiosos em torno de. Os homens da prefeitura agem rápido, numa eficiência de exército nazista. Recolhem os restos da execução em caminhões, varrem os vestígios com uma precisão cirúrgica. Há um clarão diferente, uma luminosidade mórbida em frente às escadarias da estação do metrô. As pessoas em volta retornam ao seu ritmo mecânico de vida, satisfeitas. Restaram apenas as marcas na calçada: duas pequenas crateras, um corpo sem braços. As duas árvores deixaram de existir.

06 juillet 2005

Desculpe, K.

"Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão" [Drummond]


Pedi um tempo para Katy M. Assim não dava para suportar. Atenção exclusiva, por uns dias, não. Devolvi seus livros para a biblioteca, mas prometi-lhe que leria-os todos, até o fim. Estavam me sufocando. Esqueci um pouco, só um pouco, de Dottie. Deixei sua biografia marcada na página tal, porque duvido que alguma cabecinha, daquelas que zanzam pela universidade, possa ter o menor interesse por ela. Big Loira ficou lá, pedindo pra deus que ele [não deus] ligasse. Agora admito. Sou um promíscuo sem caráter, um biscate que se vende por um conto acima da média. Pulei pro lado do inimigo, pulei a cerca. Confesso: estou lendo Virginia Woolf e uma biografia sua. Sei que poderei ser castigado pela duas - Katy e Dottie - mas, por favor... entendam minha poligamia literária. Nada pessoal, meninas. Ou seria extremamente pessoal? Mas o fato é que amo-as todas, com devoção. Isso é muito para um quase ateu. Prometo voltar, prometo... [alguém me falou a respeito de promessas: que, aquele que as faz, geralmente não cumpre].
Estou lendo escritores homens! o que é um fato muito raro de acontecer. Drummond e aquele título belíssimo, Claro Enigma, e Raduan Nassar, o homem-que-só-escreveu-dois-livros, de quem achei esse Menina a Caminho, quatro contos dos anos 60 e 70 extremamente interessantes. Gostei muito de Um Copo de Cólera, literatura visceral, bem crua. Por pouco não levei Machado de Assis, Cervantes, Thomas Mann. Até Nietzsche. Uma tendência à fase de escritores? Pouco provável. Não acredito que dure por muito tempo. Apesar de, sim, ter passado muito tempo lendo Kerouac, querendo ser Kerouac; depois, lendo Salinger e pondo a cidade do avesso em busca de tudo que fosse dele e sobre ele. Querendo ser Holden Caulfield e achando que essa tal de família Glass realmente existe [aliás, acredito até hoje]. Mas Virginia está por perto. E com ela não se brinca.

05 juillet 2005

cartas marcadas



Ops! Caiu uma carta da minha manga... [risos]. Se você quiser, pode colorir.

04 juillet 2005

jardim de centáureas

"possam as últimas bocas gritar alto
Numa floresta de gelo, num amanhecer de centáureas..."

Sylvia Plath


"Acima de tudo, quando se está usando um vestido azul francês e um chapéu de primavera novo, enfeitado com centáureas..."

Centáureas! Ela exclamou em pensamento. Fechou o pequeno livro de contos de Katherine Mansfield que comprara por seis reais. Uma pechincha. E as pessoas ainda querem argumentar que os livros estão caros, pensou, e que por isso não lêem. Ora, Cinco Contos de K. Mansfield por esse preço? Pois que fiquem com seu Diário Gaúcho de 50 cents e vibrem a cada linha escrita com violência e banalidade!
A palavra centáurea havia mexido com ela. Pegou papel e caneta e pôs-se a imaginar palavras que soassem incrivelmente belas, dessas que só se encontram em livros de ficção. Centáureas... um jardim delas. Talvez, à beira da morte, quando todos os tempos e momentos e pessoas vividos se misturam diante dos olhos, ela pudesse vislumbrar algo parecido.
Começou a fazer uma lista dessas palavras que, a seu modo, pareciam-lhe tão bonitas. Então lembrou-se de felicidade. Em português, ela tem a forma de um sorriso. Experimente pronunciá-la. Você logo sorri. Fe-li-ci-da-de... Parece que contagia!
Mas sua lista havia ficado apenas nessas duas palavras. O livrinho caíra suavemente no chão. E ela adormeceu sorrindo. Em seu jardim de centáureas.

30 juin 2005

Rabiscos


Minha nova idéia revolucionária. Espancar teclados compulsiva e convulsivamente. Até de madrugada, matar meus vizinhos com o martelar insano das teclas. Escrever cartas e corrigi-las com caneta depois. Nada de Errorex ou similares. Não estou falando de teclados de computador. Acordem! Vou procurar uma máquina antiga. Aliás, segundo a Gisa, que não seja antiga demais, sob o risco de não achar fita para a dita cuja. Uma maquininha daquelas antigas - retrô, se preferirem -, formato arredondado, uma cor berrante. Uma máquina cor de laranja ou verde, bem anos 50 [ah, isso não é antigo, por favor]. Quando me disseram que originais de livros poderiam ser extintos para sempre, pensei em ressuscitar as máquinas: larguem esses teclados branquelos dos computadores! Ou estaremos fadados a não mais queimar originais no fundo do quintal [o que, aliás, também são coisa do passado, os quintais]. Nem haverá bolinhas de papel espalhadas pelo quarto, junto com os livros, para dar charme. Nem vizinhos acordados de madrugada por nossa causa. Eu seria o Henri Langlois das máquinas de escrever.
Essa semana, enviei três correspondências, escritas a mão. Deve ser efeito do que tenho lido. As garotas, aquelas. Mansfield, Dot, nossa tia Dot. Descobri recentemente um assombroso parentesco. Dorothy é mãe de Dani. Eu e Gisa seríamos seus primos? Voltando às cartas, o envelope grande foi quase censurado pelas Empresas de Correios e Telégrafos [telégrafos?]. Muito rabiscado, segundo a balconista peitudinha. Por um momento pensei se tratar de novas e expressas ordens do Sr. Presidente dos Correios e... Telégrafos. Argumentei que em toda minha parca vida enviei envelopes rabiscados [um dos rabiscos era o trecho de um conto de K. Mansfield]. Argumento válido. Enviei um envelope rabiscado com um CD dentro [contra as normas! valores declarados não são responsabilidade da Empresa!]. Quero ver se os postais adulterados também chegam. Me avisem, destinatários. "Compra-se máquina de escrever usada, em boas condições..."

29 juin 2005

Sessão Saudosismo


Foi assim. Começo a ler emails antigos e descubro-redescubro uma infinidade de frases novas e parece que ficaram mais bonitos que antes, as frases, os emails. E parece com aquela sensação de beber água com muita pressa, comer com muita fome. Palavras com cê cedilha em tudo, como se fossem um tempero. Palavras com gosto de manjericão, ervas finas. Depois de respirar, leio tudo de novo. Ao mesmo tempo, o baque de alguém que tira o prato da tua mesa e não tem conversa. Paga a conta e sai. Sensação de ver a foto de uma mesa vazia. As conversas que já morreram. Os emails. Antigos.

28 juin 2005

Primeiro de janeiro [je ne parle pas français]

Tudo que tenho lido de Katherine Mansfield - e sobre Katherine Mansfield - me soa extremamente perturbador. Quando li "Bliss", o efeito foi imediato. Olhava à minha volta como se visse tudo pela primeira vez, como essas manhãs ou tardes logo após a chuva quando o sol aparece feito um milagre. Ou como, quando criança, olhava para o céu no dia primeiro de janeiro e acreditava que o céu era diferente no ano novo. Ontem fiquei paralisado diante do livro de contos de capa verde, escrito bem grande: K. MANSFIELD, um verde imitando bordado. Abri ao acaso: "Je ne parle pas français". Foi uma sensação assustadora e fascinante de me ver ali, descrito minuciosamente naquelas páginas. Não sabia se ria, se chorava, se saia correndo, se arrancava as páginas do livro, se morria. Ou se ficava exatamente daquele jeito: paralisado. O que tem essa mulher que conhece tão profundamente cada um de nós, cada pensamento? Foi quando me ocorreu de procurar socorro em outras páginas. Ali! Achei! Ele mesmo! Ah, Cacaso! Com seus versos curtos e certeiros, por vezes desbocados e até engraçados. Sentado no corredor da livraria, armado de papel e caneta, comecei a roubar versos...
"No triângulo amoroso o círculo tende
a vicioso"...
"Não sou amado no amor: sou
Amador"...
Um lero-lero com Cacaso foi o que me salvou.

23 juin 2005

Unravel

Então ela pôs ideiazinhas mirabolantes na sua cabeça. E nós, por muito pouco, não fizemos das galerias do MARGS o nosso Louvre. Elas, essas mulheres, andam nos cochichando coisas, vêm com umas idéias. Daqui eu me movo lentamente, "Unravel" não me sai da cabeça.
"Meu coração vai se acabando lentamente, desvendado em uma bola de crochê". Isso é Björk.
Achei a biografia da Dorothy na biblioteca, e penso que nunca mais a devolverei. Encontrei os Inéditos de Ana C. também, edição antiga da Brasiliense. Peguei Big Loira de volta, marcado exatamente na mesma página. Visitei Pessoa e Hilda:
"Não tenho entendimento com os vivos, sempre soube dos mortos, ou sei da tua sombra, nunca sei de ti".
Fluxo-Floema. Edição de 1970, a primeira.
Já teve a sensação de que as edições antigas têm o cheiro deles, dos escritores? Você abre o livro e pronto, traz de volta toda uma época, pode conversar animadamente com eles ao redor da mesa. No café com Gisa e Alexandre, muita gente estava lá: Sylvia, Clarice, Emily, Caio, Katherine. Você deve tê-los visto nas fotos. Dorothy foi passar uns dias em São Paulo, deve ficar para o aniversário da Dani. Terá ido ao show de Cida Moreira? "Loucas noites, loucas noites!", diria Emily Dickinson.
Os livros que leio agora permanecem abertos. Deixará os seus?

22 juin 2005

Piquenique com Dorothy Parker


"Se você alguma vez chegar perto de um humano
E do comportamento humano
Esteja preparado para ficar confuso
Não há, definitivamente , lógica alguma
Para o comportamento humano
Mas, ainda assim, tão irresistível..."

[Human Behaviour, Björk]

Hoje separei alguns livros como quem prepara uma cesta de piquenique. Quem sabe eles apareçam nas fotos, e qualquer semelhança terá sido o mais puro e deslavado plágio. Pensei sobre as idéias tão saudavelmente malucas, um triângulo do vício imaginário. Ou um círculo pode ser formado por três pessoas? Vamos fazer piquenique e devorar livros! Zines a atentados poéticos. Mrs. Parker batendo palminhas para nós de onde quer que esteja...

20 juin 2005

Cristina
















"...E citaria Cocteau
'Sinto que há um anjo em mim' diria
'que constantemente escandalizo'..."


[Lawrence Ferlinghetti]

Ela sempre arruma um jeito de me segurar. Mostra os livros da estante, uns livros pesados de fotografia: Henri-Cartier Bresson, Bob Wolfenson e o de um outro fotógrafo que não guardei o nome, umas fotos fortes, cruas. Perguntou se eu levaria a Cristina. E eu pensando em Clarice. "Cristina?" Era Ana Cristina Cesar. Uma lástima ela não gostar de poesia. Defende-se dizendo que não leu muitas. Acha que a "Cristina" usa muitos termos estrangeiros. E eu alego ser a marca de sua geração, a dos escritores dos anos 80. Os diálogos não se sustentam por muito tempo, e logo são preenchidos por outros livros, a coleção inteira dos Cadernos de Literatura. Conversa entremeada por fotos de gente importante: Pietro Maria Bardi, Ezra Pound, Stravinski, Fernanda Torres. "Volto amanhã para ver "Cabra Cega". Improvável café no intervalo.

18 juin 2005

Invulgar é saber ser vulgar






















"Chega um momento
em que somos aves na noite,
pura plumagem, dormindo de pé,
com a cabeça encolhida.
O que tanto zelamos
na fileira dos dias,
o que tanto brigamos
para guardar, de repente
não presta mais: jornais, retratos,
poemas, posteridade.
Minha bagagem
é a roupa do corpo."

Carpinejar

Pois visitei o tal blog, meio sem acreditar. Será mesmo do Carpinejar? Seja de quem for, os textos são maravilhosos! É uma arte saber falar do cotidiano como algo invulgar. Virar tudo do avesso, mesmo que a experiência seja mortal. Quer coisa mais corriqueira que falar de cadarços ou da predileção pelo banco mais alto do ônibus? Pois o danado do Carpinejar trata de desbanalizar tudo. Virginia Woolf escreveu sobre uma mancha na parede. Katherine Mansfield chegava a extremismos de detalhes: "o farfalhar do vestido"! É só uma questão de ver diferente, talvez. Algo que tenho praticado desde o início do meu tratamento [Björk+Mansfield]. Vocês podem não acreditar, mas está funcionando. E olha que não li nada do Jung, viu, Dani? Ainda vou escrever uma tese. Aguardo ansiosamente pelo primeira reunião oficial dos TP. E agora que aprendi a colar fotos no caderno, isso vai parecer um carnaval, ou um álbum de figurinhas dark. No meu tempo não havia figurinhas autocolantes, mas havia correspondências e postais. E a balconista do correio, na maior indiscrição, perdida entre desenhos e versos e filosofias do Snoopy coladas no envelope, perguntava, meia hora depois: carta simples ou registrada?

Correspondência Incompleta

"Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos..." [Ana C.]


Da primeira namorada, não conheci o rosto. Apenas o perfume nas cartas repletas de letras de músicas e a voz, ao telefone. Nunca uma foto, uma visita. Sabia apenas que sua pele era tão branca que assustava as pessoas no elevador. Que, da janela do prédio onde trabalhava, podia contemplar Pietro Maria Bardi em seu passeio pela Paulista. E ela dizia sempre nas cartas: "lua só leva tapa na cara, mas não aprende". Não havia emails, MSN. Eram os anos 80. Quase todas as manhãs, à espera do carteiro. De repente, o barulho da carta embaixo da porta da sala. E tudo mudava. Cartas com pétalas de flores, cartas com perfumes e uma letra tão delicada e feminina que apaixonar-se era inevitável. Cartas a cada dois dias, registradas - e sempre com um adesivo escrito URGENTE num canto do envelope - , de São Paulo. Três ou quatro páginas, no mínimo. Desenhos e versos nas cartas e no envelope, como se o espaço das cartas não fosse o suficiente. Até a derradeira notícia, transmitida pela minha mãe: "- Filho, ela não teve coragem de te contar porque sabe que és muito sensível. Ela se casou, com uma pessoa do Rio Grande do Sul..."
Até hoje, nunca pude lembrar onde foram parar todas aquelas cartas.

17 juin 2005

Para ler ouvindo "Pagan Poetry"






















Joguei meus vidrinhos de homeopatia no lixo. Sim, todos eles. Eram uns vinte, uma coleção. Deixei a homeopata sem resposta. E a mim, sem perguntas. Nunca mais retornei. Inventei meu próprio tratamento: doses abusivas de Björk, intercaladas por contos de Katherine Mansfield. O efeito começou a se manifestar: fico sorrindo sozinho por onde ando. Com meu livro inseparável, olhando para a cidade como se eu não fosse daqui. E tudo parece ser visto como se fosse a primeira vez. Não chega a ser uma euforia, mas é quase como o inexplicável sentimento de Bertha Young, "como se repentinamente tivesse engolido um pedaço brilhante daquele sol do entardecer e ele queimasse em seu peito, enviando uma chuvinha de faíscas para cada partícula, dos pés à cabeça...". O que pode ser melhor do que a cura que deixar-se contaminar completamente?

15 juin 2005

Faíscas de Bliss

Minha vida tem sido intercalada por momentos de apatia e desespero, por faíscas de entusiasmo. Desses que nos fazem rir sozinhos, sem nenhuma explicação. Estou longe de sentir novamente aquelas sensações de boca seca, pernas trêmulas e coração aos pulos, típicas dos apaixonados. Mas já dou-me por satisfeito quando aquelas faíscas acendem. Ainda sou um idealista, querendo salvar pessoas dos monstros que eu invento. Só faltam os moinhos. Tem um gato, agora, que anda pela casa, acredito numas poucas pessoas e nos mirabolantes planos da Gisa. Leio dois livros da Katherine Mansfield ao mesmo tempo. Eu, que não conhecia seus contos, agora estou assim, meio bobo. Não, totalmente bobo.
"Bertha simplesmente correu para as longas janelas.
- Oh, o que é que vai acontecer agora? - exclamou.
Mas a pereira permanecia adorável, cheia de flores e tão imóvel como sempre."
Essas faíscas, eu entendo, eu entendo! São de felicidade.

03 juin 2005

Linha 476

Nenhuma citação para começar porque esse texto parece até objetivo. Escrito assim, correndo contra o tempo, com destino à aula de Latim à noite, pegar ônibus, entregar o v.t. para o cobrador, sentar à janela e abrir Desmundo na pág. 92, fugir dos olhares dos passageiros, alunos, a maioria, da PUCRS, ônibus aos solavancos, Cristiano Fisher-Protásio-Oswaldo por quase meia hora, descer no Mercado, pegar Metrô, assistir à correria pelos bancos, encontrar um canto perto da porta e, de pé, retornar ao Desmundo... Fugir dos olhares dos passageiros, das manchetes de sempre dos piores jornais, das conversas paralelas, tão entusiasmadas, e que parecem ser as mesmas que ouvi pela manhã. Falam sobre trabalho antes de chegar ao trabalho. E falam sobre trabalho depois do trabalho. Mais meia hora e chego à Universidade. Só então é que percebo que não fui nada objetivo. Eu queria - e devia- ter falado sobre... livros. Sobre os livros de poesia da Daniela, aqueles que ela organiza pacientemente na estante, e acho que comprou um, toda saltitante pela São Paulo... E eu sem estante para acomodar meus livros, pilhas deles à minha espera. Me esperam Sylvia, Dostoiévski, Clarice, Anaïs, Kafka em quadrinhos, biografias, revistas de literatura, entre coisas emprestadas, compradas, surrupiadas. De olho nos livros das vitrines, nas estantes da biblioteca... Cervantes, Cacaso, Clarice, Carpinejar, Hilda, Lewis Carroll. Comecei minhas listas, meus Top Five, Dani, mas espere que vou procurar os nomes dos discos... Era para falar de livros, mas falei em discos. Abaixo a objetividade!

02 juin 2005

Filme Mudo

"Meu silêncio te dirá o que meu coração em si fala..."

[ Ana Miranda, in "Desmundo"]

Você é o clássico amor impossível. Vendo suas fotos com coroazinha de princesa da Disneylândia. Femme fatale com olhar que derrete o acetato do meu filme mudo, uma tragédia muda com aqueles rostos de espanto e dor, as costas da mão na testa. Eu devia ter falado do show de Ute Lemper que vi no Teatro São Pedro, ao menos para dar um sentido histórico para os textos desse blog. Afinal, isso aqui não é um diário? Boa noite, dia, descreverei aqui o meu jantar. Pão com margarina e café solúvel com leite. O gato no colo quer puxar a toalha da mesa. Ao menos ele teve a quem puxar. Prezado diário, tenho conseguido ler os livros até o fim, estou progredindo. "Um Copo de Cólera" eu já li [para descobrir, só então, que o filme era realmente ruim]. Dois livros de Lingüística, "Salomé" do Wilde e só. Os olhos maiores que a barriga. Parece que nunca viu livro. Leio "Desmundo", mas não tem Simone Spoladore. E o show de Ute Lemper parecia um cabaré.

11 mai 2005

Porcelana Chinesa

Sensação assim, de arrancar a adaga e esvair-se em sangue. Trágico adeus. Sangue na neve, nada mais a perder. As últimas conseqüências, últimas lágrimas, sorrisos, palavras, beijos, olhares, promessas, gestos, o resto do gosto de um sonho... Qual era mesmo? A dança cega, a pele branca de porcelana, boca chinesa. Cores que o sonho inventou. Excesso de beleza cega. A coreografia da luta, dos gestos, das folhas caindo. Tanto sentimento assim vai acabar te matando.

28 avril 2005

Ilusão de Movimento

Toalha de mesa sob os cotovelos. Sob a xícara de capuccino com creme que ela não pediu. Sob a taça de vinho e os guardanapos. As janelas do café, uma salvação. Divertia-se com a fisionomia indiferente do garçom. Um caso perdido. A toalha ela sempre achou bonita: azul-marinho com florzinhas brancas. Florzinhas, florezinhas... Tantas incertezas na vida e essa era apenas uma delas. Os pequenos detalhes: uma das razões da tragédia humana. Os casais vindo e indo, indo e vindo. O rapaz que troca a namorada pelo celular bebe chopp. A namorada, esquecida, é salva pelo capuccino, sem creme. Os movimentos contínuos, óbvios, vão preenchendo as mesas à janela [imagem cinematográfica: Juliette Binoche em "A Liberdade é Azul"...?]. Seus olhos perseguiam incansáveis esses movimentos. Mãos, bandejas, copos, bocas, olhares, os gestos tímidos de quem chega. Olhos ávidos de criança, de gato seguindo os rastros. Quando flagrados, eles fugiam. Por entres as florzinhas brancas da toalha azul.

27 avril 2005

Salomé e a Big Loira

E eu, que tempos atrás, teria postado isso... "Tenho andado com uma biblioteca a tiracolo, tão desesperadamente querendo ler. E as disciplinas de Artes Visuais têm sido uma terapia e tanto, revirando o arquivo morto-vivo das minhas idéias. Ficar diante de imensos papéis em branco, com gente por perto, desenvolvimento da percepção, Da Vinci, Klimt, Ferreira Gullar, grafite, História da Arte. Onde é que eu estava mesmo? Levo comigo tantos livros e entro nas livrarias querendo saquear tudo..." Mas um atrito doloroso com uma certa professora pôs tudo a perder. Ou não. Não digo adeus às artes. Nem à armas. Mas não quero aquele curso [de vida] pra mim. Ora, bolas. Técnicas, técnicas. Exibicionismo e um papel ridículo semanal para alunos-toupeiras. Admiro as toupeiras, não pessoas-toupeiras. Agora parece quase definitivo. Cursando Letras. Dom Quixote de La Mancha. Salomé. Big Loira. É só de ficção que eu preciso. E os personagens dos livros... parecem tão mais... consistentes. Vou mergulhar. Levo comigo as pedras. Por precaução.

17 mars 2005

quase inveja

"...no alarms and no surprises
no alarms e no surprises
please..." [radiohead]

Às vezes eu queria que a vida fosse mais simples. Às vezes, eu tenho uma quase inveja dessa aparente normalidade. Mas só às vezes. Muito de vez em quando. Depois o susto passa. E ouço Radiohead outra vez.

09 mars 2005

Papos de Aranha

"Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer... S.P.

folha em branco e grafite. não deixar espaços em branco. não se repetir. nunca gostei de desenhar em público. não desenhar figuras geométricas. calor no atelier. muita sede. será que ela posaria para as aulas de desenho da figura humana? ela me disse que só desenhava mulheres. preferia as mulheres. "só para desenhar?" fora dos desenhos, ela preferia homens. "eu sou casada!" usou uma exclamação ao final da frase. como se quisesse me causar surpresa. o que não causou. nada vi nas mãos que pudesse lembrar uma aliança de casamento. "vamos procurar um bebedouro? vamos tomar um pouco de ar?" ela me acompanhou. seus desenhos lembravam teias de aranha. "presa ou predadora?", "presa". não estou acostumado a desenhar em papéis de tamanho A1.

Bebê Girafa

"(Acho que te criei no interior da minha mente)..." S.P.

Fazia algum tempo já. Não marcava mais, na parede do quarto, os dias passados. Até porque, se fizesse as contas... quantos dias mesmo? pois ela, não se sabe se, por algum arrependimento [pouco provável] ou por falta do que dizer à colega da faculdade [muito provável], perguntou [e fez questão que ele soubesse depois] se ele iria ao show do Placebo. Ora, pois! Perguntou como ele estava. "Morto", ele disse. Dezesseis meses são um pouco mais do que a gestação de uma girafa. Dezesseis meses cobertos pelos entulhos dos escombros e ele deveria estar de que jeito? sorridente e feliz? repleto de planos mirabolantes? "é obvio que vou ao show do Placebo! se me conhecesse um pouco, saberia disso...", ele disse. Um pouco tarde para uma reconciliação? O eterno impasse entre Palestina e Israel. Seja como for, devo admitir que, com o Placebo diante dos meus olhos, tudo poderia acontecer.

07 mars 2005

Banquete de Mendigos

De volta à Universidade. Me senti gente de novo. Não pelo fato de estar novamente num "curso superior". O melhor de se estar numa Universidade é ter, à sua disposição, uma biblioteca inteira. Um infindável e apetitoso banquete com todos os seus pratos favoritos. E o que é melhor: a boca é livre. Final da aula de Introdução à Arte, 15h. Pouco mais de uma hora para revirar as prateleiras. Foi decepcionante constatar que, o que existe de Clarice, se resume a alguns poucos e mal cuidados exemplares. Ao menos são edições antigas, capas antigas, as melhores. Cadê Virginia Woolf? Poucos livros também. No fim das contas, o banquete já não parecia tão salivante, mas os restos de um buffet... Será que havia Sylvia? Hilda? Ana C.? Salinger? Kerouac? Preferi manter a ilusão de que estariam perdidos em alguma daquelas prateleiras com quilos de pó. Não procurei Caio, não encontrei "Insônia" do Graciliano, nem o "Dom Quixote" do Cervantes. Para não sair de mãos abanando, levei "Salomé" do Wilde e um livro para a disciplina de Fundamentos da Percepção, "O Corpo Fala", aquele que todos conhecem. Quase na saída da biblioteca, algo brilhou no corredor das literaturas inglesa e americana: era ela, elegante e ácida, de quem eu nunca havia lido nada até então: Dorothy Parker e sua "Big Loira". Dispensável o banquete. Levei para casa o prato principal.

P.S. Tenho conseguido ouvir "Lonesome Tears" do Beck sem cair em desespero extremo que coisas extremamente belas me provocam. Mas é uma sensação de se estar andando de bicicleta sem as duas mãos...
" Sinto o pulso de todos os tempos
comigo
Até quando, eu não sei..." [Arnaldo]

Ah, mas a melodiazinha dessa "Lost Cause" machuca...

11 février 2005

"Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)..."

Sylvia Plath, "Canção de Amor da Jovem Louca"


09 février 2005

I'm Neurotic...

"Hello, I'm neurotic
Creating problems that don't exist
Don't believe me when I say it's alright

Lets go to my apartment
We'll pull the sheets up over our heads
forget all reasons to go outside

Beats pulse, they're automatic
Locked inside of my apartment
Make confessions with the television on
I'm fine..."
[Pretty Girls Make Graves, uma banda de rock]

Tua confusão perturba ainda mais meus sentidos e perspectivas de vida também tão confusas. Tudo se distancia. E estou exatamente onde me deixaram. Apenas não quis sair do lugar. Uma carta triste num dia triste de aniversário. Onde se esconde, afinal, essa maldita paz que tanto almejamos? Uma miragem no deserto. [ouço "Black", Pearl Jam ao vivo, momento precioso]. Me lembraste muito, com tua carta, a narradora do conto "Johnny Panic". Vês? Teus pensamentos são povoados por Ana C. Os meus, por Sylvia. Percorremos caminhos parecidos, movidos pelos mesmos desejos. Vamos abrir uma livraria, um sebo, quem sabe com o nome de "Bíblia dos Sonhos". Haverá saraus, café, bebidas fortes, noitadas literárias, os melhores livros, os leitores mais ávidos. E os escritores mais fodas de todos os tempos.

03 février 2005

Bible of Dreams

" Quem sabe se os ratos não chegam, desde pequeninos, à conclusão de que o mundo inteiro é governado por uma multidão de pés enormes. Pois eu, do meu poiso, vejo o mundo governado por uma e uma só coisa. O susto com cara de cão, cara de demônio, cara de bruxa, cara de puta, o susto maiusculado, sem cara nenhuma - sempre o mesmo Johnny Panic, acordado ou a dormir. "
[Sylvia Plath, in "Johnny Panic and The Bible of Dreams", tradução de Ana Luísa Faria]

São poucos os momentos em que me reconheço. Em que posso dizer: "estou em casa". Um desses raros momentos é quando estou à mercê da literatura mais verdadeira que eu conheço: a obra de Sylvia Plath. A maioria, póstuma. Sylvia apenas pôde ver um livro seu: "The Colossus". Recebeu frias críticas na época. Mais de vinte anos depois, "The Collected Poems", seria agraciado com o Prêmio Pulitzer. Tarde demais. O que leio agora, após meses de espera, é seu "Johnny Panic And The Bible of Dreams", em português de Portugal, com o divertido título de "Zé Susto e A Bíblia dos Sonhos". Assombroso, assombroso. Nas páginas de Sylvia é que me sinto em casa.

25 janvier 2005

Pilhagem

Se o crime está irremediavelmente generalizado, incentivemos então o roubo de poemas para distribuí-los aos necessitados. Saquearemos, das grandes livrarias, todas as obras completas: Cecília Meireles, Drummond, Rimbaud, Ana C. E os livros de auto-ajuda? Oh, estes seriam impiedosamente exterminados diante de seus autores e editores. Estes sim, os verdadeiros criminosos. Ouço ouço ouço "Obstacle 1", do Interpol...

perto demais













"Nem o mundo, nem mesmo o sol podem mostrar
simultaneamente ambas as faces"

Anaïs Nin



"Closer" é uma amargo deleite. Inúteis crenças e promessas de amores eternos que não existem [nesse exato instante, ouço "Roxanne" em ritmo de tango]. E o que é isso mesmo que chamam de amor? Um sentimentozinho egoísta e arrogante que não sobrevive mais do que alguns meses. Um vírus que vai ocupando e inutilizando célula por célula, como bolhas de plástico, furadas compulsivamente. Chega a ser patético presenciar esse jogo, cujo vencedor será o que melhor dissimular ou souber burlar melhor as regras [regras, aliás, que eu nunca compreendi direito]. Seja como for, palmas para Natalie Portman!

P.S. Ainda sobre "The Dreamers": vontade de ouvir toneladas de Janis Joplin no volume máximo! Ah, esse filme é um tributo ao cinema, aos amantes do cinema, aos amantes, à rebeldia, aos sonhos e aos meus insubstituíveis e venerados anos 60...






21 janvier 2005

Da Casa do Incesto

"Não sei dizer como todas essas peças separadas conseguem ser EU. Eu não existo. Não sou um corpo..."
[Anaïs Nin]

to wish impossible things

"Era a esperança de tudo
Que poderíamos ter sido
Que me enchia com a esperança
De desejar
Coisas impossíveis..." [The Cure]

Vi "The Dreamers" do Bertolucci. Ainda não consegui sair da sala do cinema...

Eu Não Tenho Medo

"Há qualquer coisa de perverso no jeito em que a gente diz
- não é nada, não é nada." [Ana C.]

"Eu Não Tenho Medo" me deixou sem palavras, algo como o testemunho silencioso da Natureza presenciando tudo aquilo. Aquelas crianças nos confins da Itália, nas plantações intermináveis de trigo. Tanta inocência não tem mais lugar nesse mundo, nem a inocência do próprio diretor. Uma obra-prima perdida.

O Dia Em Que Júpiter Encontrou Saturno

- Você tem um cigarro?
- Estou tentando parar de fumar.
- Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
- Você tem uma coisa nas mãos agora.
- Eu?
- Eu.

[Caio F., no livro "Morangos Mofados"]

20 janvier 2005

Before Sunset















"Todos os relógios da cidade
Começam a girar e a tocar
Mas não deixe
O tempo te enganar
Pois o tempo
Não há quem conquiste
Em angústias e preocupações
A vida escoa vagamente
E a todos
O tempo há de consumir
Seja agora ou no porvir..."

[W.H.Auden, citado no filme "Antes do Amanhecer"]

Hoje sonhei com Caio F. Assim mesmo, do nada. Não disse nada de especial. Ele aparecia, no sonho, como um ex-professor ou ex-colega de cursinho, isso não ficou claro. O que? E quem disse que sonhos precisam ter sentido? Ontem assisti ao tão aguardado, belo e reconfortante "Antes do Pôr do Sol". Nada a dever a "Antes do Amanhecer", que retratava todo o entusiasmo de quem reside na casa dos 20 anos. "Antes do Pôr do Sol" é mais contido, com todas as seguranças e frustrações de quem já passou dos 30. O final deixa a platéia daquele jeito, boquiaberta. Inteligentíssimo. Se você não aprecia bons e intermináveis diálogos, esqueça. Mas se arrependerá depois, tenho certeza. Minha trilha sonora de cabeceira tem sido Interpol. Respiro ao som daquelas guitarras cortantes, belas e comoventes. Como sangue escorrendo. Folheei, por algumas horas, páginas e mais páginas de Clarice nas prateleiras da Cultura, em especial suas correspondências imortalizadas. Por muito pouco não levei os poemas de W.H.Auden, com o poema que Jesse recita para Céline. Haverá mesmo essa gravação de Dylan Thomas recitando poemas de Auden? Ouvir a voz desses escritores deve ser como ouvir a voz de um deus, as paredes tremeriam e você pediria clemência, caso sobrevivesse. Me disseram que há gravações na internet de Sylvia Plath lendo seus poemas. Acho que eu não dormiria por noites a fio. Nem estaria aqui para descrever.

13 janvier 2005

Prendimi L'Anima

"Conheces a cabra-cega dos corações miseráveis?"
[Ana Cristina Cesar]

Hoje decidi que levaria Ana C. comigo. O primeiro livro, A Teus Pés. Preciso retomar a obra de Ana. Ler Ana C. na poltrona do ônibus, ao lado da janela, é a melhor sensação que se pode ter. Todos aqueles versos que fariam a felicidade de qualquer cleptomaníaco literário. Frases para se escrever em diários, nas paredes do quarto, nas correspondências. Penso o tempo todo no filme que vi ontem à noite, penso em roubar versos, frases. Jornada da Alma é um tributo ao amor visceral, aquele louco amor entre Carl Jung e Sabina Spielrein. Eles escreviam diários em caderninhos de capa dura que os acompanhavam onde fossem, eles escreviam cartas e encontraram-se numa exposição de Gustav Klimt! Sabina curou-se com o amor de Jung. Ele a ouvia, ele acreditava nela, ele emprestou seu diário como prova de confiança. Ele chorou de felicidade. Ela o amava ardentemente. Ah, e aquelas canções russas e citações de Maiakóvski! Uma história sem pieguices baratas. Sem Olgas rastejantes e braços estendidos em direção ao Oscar.

12 janvier 2005

Delírios de Otimismo

"Tudo que eu pretendi foi dizer honestamente às pessoas: 'Olhem para vocês próprios e percebam quão ruim e estéril é a vida que vocês levam'. É importante que as pessoas percebam que podem criar uma vida melhor para si próprias. Um dia certamente o farão. Não viverei para vê-lo, mas sei que isso acontecerá, que as coisas serão diferentes".
[Anton Tchekhov]

11 janvier 2005

Tchekhov e Bardot

"Que é que eu posso escrever? Como recomeçar a anotar frases? A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-la. Eu jogo com elas como se lançam dados: acaso e fatalidade."
[Clarice Lispector, "Sobre a Escrita..."]

Ontem li, na orelha de um livro de Tchekov, que os melhores textos são aqueles que não são escritos. Quase levei Tchekov pra casa depois disso... Depois, vi Brigitte Bardot desfilando pela capa da Bravo numa foto dos anos 50. E queria levar Brigitte também. Nada agradável essa sensação de comprar pessoas como artigos de supermercado. No entanto, lá estão, insinuando-se, Clarice, Colasanti, Drummond, Cecília, Eliot, Callas... Ao som de Travis na Livraria Saraiva.

10 janvier 2005

Provérbio Bárbaro

"De que adianta
correr
quando se está
no caminho errado?"



quem tomará conta dos gatos?

...Mas quando o espírito se libertar,
quem tomará conta dos gatos? [Justine, em "Dani"]

Felicidade foi-se embora,
num projeto de passeio
em círculos. [Lupicínio & Ana C.]

05 janvier 2005

Correspondência Incompleta

"Sou uma carta nesta ranhura -
Vou ao encontro de um nome, de dois olhos..." [Sylvia Plath, no livro "Ariel"]

Redigi onze páginas... Achei um endereço interessante para mortos de fome por Letras: www.paralelos.org . Não pude ler com a devida calma, mas é repleto de boas surpresas, textos que não acabam mais. De sete a dez dias para uma correspondência chegar...

04 janvier 2005

Anaïs

"Realidade não me impressiona. Eu só acredito em intoxicação, em êxtase, e quando vida ordinária me algemar, eu escapo, de uma maneira ou de outra. Nenhum muro mais." [Anaïs Nin]

Óbvio que eu roubaria esse texto do teu blog, pensou que escaparias?

Por Trás Das páginas de Dostoiévski

"Hoje de manhã, eu acordei
Sozinho pensei
Onde está o arco-íris
Já não sei se você é o arco-íris..." [Arnaldo Baptista]

Hoje de manhã, encarei o mundo por trás das páginas de "O Jogador", do Dostoiévski, tentando desviar-me dos olhares de espanto no metrô e no ônibus. Paciência. Pode ser o cabelo. Pode ser a camiseta do Joy Division. Devo estar assustador. Ontem, vi um filme que não gostei, apesar de francês: "Nathalie...". Desperdício de elenco, apesar dos esforços de Emanuelle Béart para tentar erguer os cadáveres de Depardieu e Ardant [se ao menos tivessem escolhido Isabelle Huppert...].
Dezembro foi o canto do cisne que janeiro se encarregou impiedosamente de afogar. Assassinou-o logo no primeiro ato. Os sonhos que tive pareciam tão palpáveis... e os vejo sendo arrastados como os mortos da Indonésia. Corpos e lixo. Negra água salgada. Agora, olho para um dos lados e, num sobressalto, vejo apenas a poltrona do cinema vazia. Olho para o outro e avisto os mergulhadores encerrarem suas buscas ao Monstro do Lago Ness. Todos os meus esforços desperdiçados, um a um. E você, alheia a tudo, tão interessada nos livros que você revira desesperadamente pelas prateleiras, sem encontrar resposta. Reconheço a minha pretensão. Hora de virar a página. A dona irá reclamar pelo seu livro.

03 janvier 2005

Bem vindos a 1970

Eu vou me salvar
Eu vou me salvar
Para garantir a minha vida eterna
Peço misericórdia
Vou pegar as leis do todo-poderoso
E pra sempre cantar
Aleluia
Eu vou me salvar... [ "Eu vou me Salvar", Rita Lee/Élcio Decário, do disco "Build Up", 1970]

Minhas trilhas sonoras de fim-início-fim-de-ano são sempre movidas a qualquer coisa dos anos 60/70. Não podia ser diferente dessa vez. Rita Lee Jones, de 1970, preenchendo os espaços recém-nascidos disso que dizem ser o ano novo, 2005, século XXI. Ontem ouvi Arnaldo e aquele CD maravilhoso chamado Let It Bed. Que sejamos - ou, ao menos, esforcemo-nos para tal - íntegros, sensíveis e dignos como Arnaldo nos ensina em suas letras e melodias...

Deve ser amor o que eu estou sentindo, yeah!