30 juin 2005

Rabiscos


Minha nova idéia revolucionária. Espancar teclados compulsiva e convulsivamente. Até de madrugada, matar meus vizinhos com o martelar insano das teclas. Escrever cartas e corrigi-las com caneta depois. Nada de Errorex ou similares. Não estou falando de teclados de computador. Acordem! Vou procurar uma máquina antiga. Aliás, segundo a Gisa, que não seja antiga demais, sob o risco de não achar fita para a dita cuja. Uma maquininha daquelas antigas - retrô, se preferirem -, formato arredondado, uma cor berrante. Uma máquina cor de laranja ou verde, bem anos 50 [ah, isso não é antigo, por favor]. Quando me disseram que originais de livros poderiam ser extintos para sempre, pensei em ressuscitar as máquinas: larguem esses teclados branquelos dos computadores! Ou estaremos fadados a não mais queimar originais no fundo do quintal [o que, aliás, também são coisa do passado, os quintais]. Nem haverá bolinhas de papel espalhadas pelo quarto, junto com os livros, para dar charme. Nem vizinhos acordados de madrugada por nossa causa. Eu seria o Henri Langlois das máquinas de escrever.
Essa semana, enviei três correspondências, escritas a mão. Deve ser efeito do que tenho lido. As garotas, aquelas. Mansfield, Dot, nossa tia Dot. Descobri recentemente um assombroso parentesco. Dorothy é mãe de Dani. Eu e Gisa seríamos seus primos? Voltando às cartas, o envelope grande foi quase censurado pelas Empresas de Correios e Telégrafos [telégrafos?]. Muito rabiscado, segundo a balconista peitudinha. Por um momento pensei se tratar de novas e expressas ordens do Sr. Presidente dos Correios e... Telégrafos. Argumentei que em toda minha parca vida enviei envelopes rabiscados [um dos rabiscos era o trecho de um conto de K. Mansfield]. Argumento válido. Enviei um envelope rabiscado com um CD dentro [contra as normas! valores declarados não são responsabilidade da Empresa!]. Quero ver se os postais adulterados também chegam. Me avisem, destinatários. "Compra-se máquina de escrever usada, em boas condições..."

29 juin 2005

Sessão Saudosismo


Foi assim. Começo a ler emails antigos e descubro-redescubro uma infinidade de frases novas e parece que ficaram mais bonitos que antes, as frases, os emails. E parece com aquela sensação de beber água com muita pressa, comer com muita fome. Palavras com cê cedilha em tudo, como se fossem um tempero. Palavras com gosto de manjericão, ervas finas. Depois de respirar, leio tudo de novo. Ao mesmo tempo, o baque de alguém que tira o prato da tua mesa e não tem conversa. Paga a conta e sai. Sensação de ver a foto de uma mesa vazia. As conversas que já morreram. Os emails. Antigos.

28 juin 2005

Primeiro de janeiro [je ne parle pas français]

Tudo que tenho lido de Katherine Mansfield - e sobre Katherine Mansfield - me soa extremamente perturbador. Quando li "Bliss", o efeito foi imediato. Olhava à minha volta como se visse tudo pela primeira vez, como essas manhãs ou tardes logo após a chuva quando o sol aparece feito um milagre. Ou como, quando criança, olhava para o céu no dia primeiro de janeiro e acreditava que o céu era diferente no ano novo. Ontem fiquei paralisado diante do livro de contos de capa verde, escrito bem grande: K. MANSFIELD, um verde imitando bordado. Abri ao acaso: "Je ne parle pas français". Foi uma sensação assustadora e fascinante de me ver ali, descrito minuciosamente naquelas páginas. Não sabia se ria, se chorava, se saia correndo, se arrancava as páginas do livro, se morria. Ou se ficava exatamente daquele jeito: paralisado. O que tem essa mulher que conhece tão profundamente cada um de nós, cada pensamento? Foi quando me ocorreu de procurar socorro em outras páginas. Ali! Achei! Ele mesmo! Ah, Cacaso! Com seus versos curtos e certeiros, por vezes desbocados e até engraçados. Sentado no corredor da livraria, armado de papel e caneta, comecei a roubar versos...
"No triângulo amoroso o círculo tende
a vicioso"...
"Não sou amado no amor: sou
Amador"...
Um lero-lero com Cacaso foi o que me salvou.

23 juin 2005

Unravel

Então ela pôs ideiazinhas mirabolantes na sua cabeça. E nós, por muito pouco, não fizemos das galerias do MARGS o nosso Louvre. Elas, essas mulheres, andam nos cochichando coisas, vêm com umas idéias. Daqui eu me movo lentamente, "Unravel" não me sai da cabeça.
"Meu coração vai se acabando lentamente, desvendado em uma bola de crochê". Isso é Björk.
Achei a biografia da Dorothy na biblioteca, e penso que nunca mais a devolverei. Encontrei os Inéditos de Ana C. também, edição antiga da Brasiliense. Peguei Big Loira de volta, marcado exatamente na mesma página. Visitei Pessoa e Hilda:
"Não tenho entendimento com os vivos, sempre soube dos mortos, ou sei da tua sombra, nunca sei de ti".
Fluxo-Floema. Edição de 1970, a primeira.
Já teve a sensação de que as edições antigas têm o cheiro deles, dos escritores? Você abre o livro e pronto, traz de volta toda uma época, pode conversar animadamente com eles ao redor da mesa. No café com Gisa e Alexandre, muita gente estava lá: Sylvia, Clarice, Emily, Caio, Katherine. Você deve tê-los visto nas fotos. Dorothy foi passar uns dias em São Paulo, deve ficar para o aniversário da Dani. Terá ido ao show de Cida Moreira? "Loucas noites, loucas noites!", diria Emily Dickinson.
Os livros que leio agora permanecem abertos. Deixará os seus?

22 juin 2005

Piquenique com Dorothy Parker


"Se você alguma vez chegar perto de um humano
E do comportamento humano
Esteja preparado para ficar confuso
Não há, definitivamente , lógica alguma
Para o comportamento humano
Mas, ainda assim, tão irresistível..."

[Human Behaviour, Björk]

Hoje separei alguns livros como quem prepara uma cesta de piquenique. Quem sabe eles apareçam nas fotos, e qualquer semelhança terá sido o mais puro e deslavado plágio. Pensei sobre as idéias tão saudavelmente malucas, um triângulo do vício imaginário. Ou um círculo pode ser formado por três pessoas? Vamos fazer piquenique e devorar livros! Zines a atentados poéticos. Mrs. Parker batendo palminhas para nós de onde quer que esteja...

20 juin 2005

Cristina
















"...E citaria Cocteau
'Sinto que há um anjo em mim' diria
'que constantemente escandalizo'..."


[Lawrence Ferlinghetti]

Ela sempre arruma um jeito de me segurar. Mostra os livros da estante, uns livros pesados de fotografia: Henri-Cartier Bresson, Bob Wolfenson e o de um outro fotógrafo que não guardei o nome, umas fotos fortes, cruas. Perguntou se eu levaria a Cristina. E eu pensando em Clarice. "Cristina?" Era Ana Cristina Cesar. Uma lástima ela não gostar de poesia. Defende-se dizendo que não leu muitas. Acha que a "Cristina" usa muitos termos estrangeiros. E eu alego ser a marca de sua geração, a dos escritores dos anos 80. Os diálogos não se sustentam por muito tempo, e logo são preenchidos por outros livros, a coleção inteira dos Cadernos de Literatura. Conversa entremeada por fotos de gente importante: Pietro Maria Bardi, Ezra Pound, Stravinski, Fernanda Torres. "Volto amanhã para ver "Cabra Cega". Improvável café no intervalo.

18 juin 2005

Invulgar é saber ser vulgar






















"Chega um momento
em que somos aves na noite,
pura plumagem, dormindo de pé,
com a cabeça encolhida.
O que tanto zelamos
na fileira dos dias,
o que tanto brigamos
para guardar, de repente
não presta mais: jornais, retratos,
poemas, posteridade.
Minha bagagem
é a roupa do corpo."

Carpinejar

Pois visitei o tal blog, meio sem acreditar. Será mesmo do Carpinejar? Seja de quem for, os textos são maravilhosos! É uma arte saber falar do cotidiano como algo invulgar. Virar tudo do avesso, mesmo que a experiência seja mortal. Quer coisa mais corriqueira que falar de cadarços ou da predileção pelo banco mais alto do ônibus? Pois o danado do Carpinejar trata de desbanalizar tudo. Virginia Woolf escreveu sobre uma mancha na parede. Katherine Mansfield chegava a extremismos de detalhes: "o farfalhar do vestido"! É só uma questão de ver diferente, talvez. Algo que tenho praticado desde o início do meu tratamento [Björk+Mansfield]. Vocês podem não acreditar, mas está funcionando. E olha que não li nada do Jung, viu, Dani? Ainda vou escrever uma tese. Aguardo ansiosamente pelo primeira reunião oficial dos TP. E agora que aprendi a colar fotos no caderno, isso vai parecer um carnaval, ou um álbum de figurinhas dark. No meu tempo não havia figurinhas autocolantes, mas havia correspondências e postais. E a balconista do correio, na maior indiscrição, perdida entre desenhos e versos e filosofias do Snoopy coladas no envelope, perguntava, meia hora depois: carta simples ou registrada?

Correspondência Incompleta

"Quando entre nós só havia
uma carta certa
a correspondência
completa
o trem os trilhos
a janela aberta
uma certa paisagem
sem pedras ou
sobressaltos..." [Ana C.]


Da primeira namorada, não conheci o rosto. Apenas o perfume nas cartas repletas de letras de músicas e a voz, ao telefone. Nunca uma foto, uma visita. Sabia apenas que sua pele era tão branca que assustava as pessoas no elevador. Que, da janela do prédio onde trabalhava, podia contemplar Pietro Maria Bardi em seu passeio pela Paulista. E ela dizia sempre nas cartas: "lua só leva tapa na cara, mas não aprende". Não havia emails, MSN. Eram os anos 80. Quase todas as manhãs, à espera do carteiro. De repente, o barulho da carta embaixo da porta da sala. E tudo mudava. Cartas com pétalas de flores, cartas com perfumes e uma letra tão delicada e feminina que apaixonar-se era inevitável. Cartas a cada dois dias, registradas - e sempre com um adesivo escrito URGENTE num canto do envelope - , de São Paulo. Três ou quatro páginas, no mínimo. Desenhos e versos nas cartas e no envelope, como se o espaço das cartas não fosse o suficiente. Até a derradeira notícia, transmitida pela minha mãe: "- Filho, ela não teve coragem de te contar porque sabe que és muito sensível. Ela se casou, com uma pessoa do Rio Grande do Sul..."
Até hoje, nunca pude lembrar onde foram parar todas aquelas cartas.

17 juin 2005

Para ler ouvindo "Pagan Poetry"






















Joguei meus vidrinhos de homeopatia no lixo. Sim, todos eles. Eram uns vinte, uma coleção. Deixei a homeopata sem resposta. E a mim, sem perguntas. Nunca mais retornei. Inventei meu próprio tratamento: doses abusivas de Björk, intercaladas por contos de Katherine Mansfield. O efeito começou a se manifestar: fico sorrindo sozinho por onde ando. Com meu livro inseparável, olhando para a cidade como se eu não fosse daqui. E tudo parece ser visto como se fosse a primeira vez. Não chega a ser uma euforia, mas é quase como o inexplicável sentimento de Bertha Young, "como se repentinamente tivesse engolido um pedaço brilhante daquele sol do entardecer e ele queimasse em seu peito, enviando uma chuvinha de faíscas para cada partícula, dos pés à cabeça...". O que pode ser melhor do que a cura que deixar-se contaminar completamente?

15 juin 2005

Faíscas de Bliss

Minha vida tem sido intercalada por momentos de apatia e desespero, por faíscas de entusiasmo. Desses que nos fazem rir sozinhos, sem nenhuma explicação. Estou longe de sentir novamente aquelas sensações de boca seca, pernas trêmulas e coração aos pulos, típicas dos apaixonados. Mas já dou-me por satisfeito quando aquelas faíscas acendem. Ainda sou um idealista, querendo salvar pessoas dos monstros que eu invento. Só faltam os moinhos. Tem um gato, agora, que anda pela casa, acredito numas poucas pessoas e nos mirabolantes planos da Gisa. Leio dois livros da Katherine Mansfield ao mesmo tempo. Eu, que não conhecia seus contos, agora estou assim, meio bobo. Não, totalmente bobo.
"Bertha simplesmente correu para as longas janelas.
- Oh, o que é que vai acontecer agora? - exclamou.
Mas a pereira permanecia adorável, cheia de flores e tão imóvel como sempre."
Essas faíscas, eu entendo, eu entendo! São de felicidade.

03 juin 2005

Linha 476

Nenhuma citação para começar porque esse texto parece até objetivo. Escrito assim, correndo contra o tempo, com destino à aula de Latim à noite, pegar ônibus, entregar o v.t. para o cobrador, sentar à janela e abrir Desmundo na pág. 92, fugir dos olhares dos passageiros, alunos, a maioria, da PUCRS, ônibus aos solavancos, Cristiano Fisher-Protásio-Oswaldo por quase meia hora, descer no Mercado, pegar Metrô, assistir à correria pelos bancos, encontrar um canto perto da porta e, de pé, retornar ao Desmundo... Fugir dos olhares dos passageiros, das manchetes de sempre dos piores jornais, das conversas paralelas, tão entusiasmadas, e que parecem ser as mesmas que ouvi pela manhã. Falam sobre trabalho antes de chegar ao trabalho. E falam sobre trabalho depois do trabalho. Mais meia hora e chego à Universidade. Só então é que percebo que não fui nada objetivo. Eu queria - e devia- ter falado sobre... livros. Sobre os livros de poesia da Daniela, aqueles que ela organiza pacientemente na estante, e acho que comprou um, toda saltitante pela São Paulo... E eu sem estante para acomodar meus livros, pilhas deles à minha espera. Me esperam Sylvia, Dostoiévski, Clarice, Anaïs, Kafka em quadrinhos, biografias, revistas de literatura, entre coisas emprestadas, compradas, surrupiadas. De olho nos livros das vitrines, nas estantes da biblioteca... Cervantes, Cacaso, Clarice, Carpinejar, Hilda, Lewis Carroll. Comecei minhas listas, meus Top Five, Dani, mas espere que vou procurar os nomes dos discos... Era para falar de livros, mas falei em discos. Abaixo a objetividade!

02 juin 2005

Filme Mudo

"Meu silêncio te dirá o que meu coração em si fala..."

[ Ana Miranda, in "Desmundo"]

Você é o clássico amor impossível. Vendo suas fotos com coroazinha de princesa da Disneylândia. Femme fatale com olhar que derrete o acetato do meu filme mudo, uma tragédia muda com aqueles rostos de espanto e dor, as costas da mão na testa. Eu devia ter falado do show de Ute Lemper que vi no Teatro São Pedro, ao menos para dar um sentido histórico para os textos desse blog. Afinal, isso aqui não é um diário? Boa noite, dia, descreverei aqui o meu jantar. Pão com margarina e café solúvel com leite. O gato no colo quer puxar a toalha da mesa. Ao menos ele teve a quem puxar. Prezado diário, tenho conseguido ler os livros até o fim, estou progredindo. "Um Copo de Cólera" eu já li [para descobrir, só então, que o filme era realmente ruim]. Dois livros de Lingüística, "Salomé" do Wilde e só. Os olhos maiores que a barriga. Parece que nunca viu livro. Leio "Desmundo", mas não tem Simone Spoladore. E o show de Ute Lemper parecia um cabaré.