Esta é a mala de couro que contém a famosa coleção.
Reparem nas minhas mãos, vazias.
Meus bolsos também estão vazios.
Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas.
Viro de costas, dou uma volta inteira.
Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum
alçapão escondido, nem jogos de luz enganadores.
Ana Cristina Cesar
[livremente inspirado na melancolia explícita de Gentle Waves]
Que cena patética!, diriam seus amigos diante daquele quadro: ele a beijava tão vorazmente como se beijasse alguém que estivera longe por meses, anos ou mesmo décadas. Quanto tempo não se viam? Cinco dias? Talvez nem isso. Numa tarde calorenta e abafada, como costumam ser as tardes de fevereiro, ele cobria seu rosto de beijos. Beijava olhos, nariz, em torno da boca, os braços, mãos, barriga [ela sente cócegas]. Uma felicidade imensa. Ao passo que ela. Ela apenas sorria. Constrangida talvez? Impassível talvez? Quem sabe houvesse, naquele sorriso, um tantinho de contentamento. Ou seria pura e simplesmente vaidade? Ele a beijava sem receber ou esperar resposta. Ele a beijava como se beijasse alguém que está do outro lado da vidraça numa daquelas despedidas de aeroporto. Porque ele nunca poderia prever quando a veria novamente. Eram como K. e Sumire em Minha Querida Sputinik. Num momento como aquele, uma faísca, por mais inofensiva que fosse, poderia provocar um incêndio avassalador. Foi assim, entre a música vinda da cozinha, choros de criança e alarmes de carro – uma orquestra pré ou pós apocalípica? – que ele parou, subitamente, de beijá-la, olhando para o fundo sem fim daqueles olhos castanhos brilhantes. Foram delas as seguintes palavras: nós já conversamos sobre isso. Eu nada posso fazer por você. Sei que você me entende... Calmamente, ele se levanta, amarra os tênis e sai: vou comprar cigarros, diz, a caminho do corredor. Um cigarro apenas. Um cigarro de vinte centavos. No elevador, ele lembra das plantas mortas na cozinha. As mesmas plantas que ela nunca tivera habilidade suficiente para preservar.
Ela é um pouco Suzanne Vega, tem algo de Chan Marshall, a beleza enigmática de Fiona Apple e canta umas canções belíssimas, um tanto amargas, com títulos inspirados, como: "L'Enfer", L"Indécise", Un Beau Jour Pour Mourir", "Bye Bye Beauté"... Uma voz sussurrante, meio frágil que, depois, não desgruda dos seus ouvidos. Seu nome? Coralie Clément.
Ela mora nesta casa ali, tem o seu mundo do lado de fora se atraca com a terra com seus dedos e sua boca - ela tem cinco anos de idade enfia minhocas num barbante, mantém aranhas guardadas nos bolsos coleciona asas de mosca num pote de vidro, esfrega varejeiras e as prega num varal ela tem um amigo, ele mora ao lado, eles ficam escutando o clima ele sabe quantas sardas ela tem, ela coça a barba dele ela pinta livros imensos, cola um no outro eles viram um corvo grande, ele planou céu abaixo - ela o tocou hoje é um aniversário - eles estão chupando charutos ele está com um colar de flores, lança um pássaro dentro das calcinhas dela eles estão chupando charutos, deitam na banheira, colar de flores...
Gisa tem um novo brinquedo. Imagino seus olhos reluzindo de entusiasmo, riso nervoso de satisfação [ela tem um riso engraçado]. Não seria exagero dizer que, ao se deparar com seu laptop, ela tivesse dado pulinhos e batido palmas. A menininha que perde o bom humor quando o verão chega, agora sentar-se-á na cama ao final do dia, talvez com a janela do quarto aberta, ouvindo sabe-se lá o que como trilha sonora - The Killers não é lá muito introspectivo, quem sabe Belle & Sebastian? - abrirá o computadorzinho sobre o colo [era seu sonho] e escreverá contos, contos infantis - que eu ilustrarei, não é? O gato deitado no parapeito da janela agora pode dormir sossegado.
Ela olhava atenta, quase sem pestanejar, para os olhos da outra que lhe contava - detalhada e animadamente - tudo sobre a festa. Enquanto prestava atenção, sua respiração havia literalmente paralisado. Árdua tentativa de procurar ser a mais natural possível, forçando sorrisos, dando a entender que estava feliz por sua amiga. Mas no fundo, bem no fundo, ela se afogava no fundo de seus pensamentos, olhos fixos nos olhos dela, como que a dizer: "Não me seja assim tão cruel, acaso preciso saber que agarrou algumas meninas na festa, paquerou, azarou, xavecou...? Com meninos, você sabe, é diferente, são do outro sexo. Mas com meninas como eu, por favor, não faça isso comigo. Você, que não é capaz de me amar com a mesma intensidade que eu a amo [veja bem, não a culpo], tenha, por favor, a delicadeza de não me ferir." Procurando manter a naturalidade, ela detém-se num romance erótico de Hilda Hilst. O coração incendiando de tanto desespero. Como borboletas em chamas.