28 juillet 2006

Natalie ou Retrato de Uma Alma Quando Jovem



Por detrás de cada pedra
Por detrás de cada homem
Por detrás de cada sombra
O vento traz-me o teu rosto

Roberto Piva

Tem vezes que ela é uma menina de doze anos chamada Mathilda caminhando a passos largos e apressados com um vaso de flores nas mãos como se fosse o coração de alguém muito amado.

Tem vezes que ela se chama Catherine e se perde em pensamentos, acuada num canto da sala escura sem querer ver ninguém, olhos arregalados para a Lua imensa na janela, a cara redonda da Lua querendo devorá-la inteira.

Tem vezes que ela é uma senhora que já viu quase tudo na vida, já criou e alimentou seus filhos e agora anda de avental e chinelos sozinha pela casa como a Senhora Glass, cigarros pelos bolsos, cabelos desalinhados, estendendo lençóis no varal, com cheiro de amaciante.

Mas por detrás de todos os nomes que ela inventa – e você não precisa querer adivinhar, haverá de sabê-lo, pelo seu semblante, o nome dela naquele dia – existe seu nome verdadeiro, é o nome pelo qual ela atende quando está... a-pai-xo-na-da. Ela mal suporta o peso do próprio e frágil coração, segura-o apreensiva entre as mãos sobre o colo (como se fosse o vaso de flores – hortências? tulipas?) com o solavanco do ônibus. Ai dela se ele voar pela janela afora e se estilhaçar estrondosamente no chão.

Ela não sabe precisar exatamente quando foi que suas pernas cambalearam assim pela última vez, a boca secou, a fome desapareceu e deixou de dormir apenas para ficar pensando naquele rosto. Ela se vê agora num amanhecer de centáureas, libélulas formigando (libélulas formigam, mesmo não sendo formigas) pelo seu estômago.

Ela não sente mais o peso da idade, porque almas são tão antigas, ela flutua outra vez como se fosse a menina de doze anos. Ela vê um sorriso iluminando a calçada com folhas amarelas dançando desgovernadas com o revoar de borboletas azuis. Ela vê o reflexo de seus olhos brilhando nos olhos que brilham refletidos nos olhos dela.

Ela agora atende novamente pelo seu verdadeiro nome. Você agora poderá chamá-la de Natalie.

26 juillet 2006

off board



almas
almas
como icebergs
como velas...

Roberto Piva

Eu jamais a tinha visto daquele jeito. Na verdade, eu nunca lhe dera muita atenção. Foi só quando iniciamos uma conversa aparentemente banal sobre condições do tempo e outras técnicas similares de lapidar o gelo, é que pude percebê-la melhor: estatura baixa, um tanto parecida com a Nathalie Portman. Ela observava-nos conversar, com olhos assustados, por detrás do meu ombro esquerdo. Queria que eu a apresentasse, que a incluíssemos também na conversa. Expliquei à outra pessoa que éramos muito parecidos, mesmos gostos para Literatura, Música, Cinema. Claro que havia situações em que ela queria ouvir Cat Power pela enésima vez, infernizando os vizinhos, enquanto flutuava pela casa, desorganizando todos os meus livros. Ao passo que eu preferia apreciar Jacqueline Du Pré da janela da sala, à procura de luas no céu, em total abandono. Mas, na maioria das vezes, nos entendíamos muito bem.

Então aconteceu o que era de se esperar. Ela caiu de encanto pela minha amiga. E eu passei a desconfiar que era recíproco. Por pura maldade, essa amiga decidiu esnobá-la: “Nós não teríamos a menor chance”. Imediatamente o sorriso apagou do seu rosto, e feito uma criança magoada, ela saiu de perto, acho que foi chorar escondida atrás da porta. Não havia nada que a convencesse a voltar. Queria ir embora de qualquer jeito. Dava pena de ver (foi quando lembrei da Mathilda em O Profissional, ela e aquele vasinho de flores, era de cortar o coração em tirinhas e preparar um strogonoff com ele). Minha amiga voltou atrás, encheu-a de elogios e seus olhos voltaram a brilhar por detrás das lágrimas, como raiozinhos de sol em gotas de chuva. Nos despedimos por fim. E a noite inteira, já em casa, ela em volta de mim, não tocava em outro assunto. Era só “quando vamos vê-la novamente? quando?”.

Pode parecer estranho, partindo de um sujeito ateu, mas essa pessoa de quem acabei de falar é a mesma que, quase todas as noites e madrugadas adentro, datilografa alucinadamente em sua Olivetti Lettera 82 verde quase tudo o que transcrevo para a tela do computador (ela abomina essas tecnologias). É ela a autora da maioria dos textos, devo confessar. Minha doce alma off board.

24 juillet 2006

Brigitte n'est pas Deneuve



O relógio se aproxima das duas da tarde e da noite para o dia o céu foi ficando cinza, o vento varrendo todos os ruídos do bairro Cristal. Lia em voz alta os poemas do Roberto Piva até que o cigarro apagasse, até o CD parar de tocar. Impossível ler Roberto Piva mentalmente. Ele rouba o ar que você respira. Ele carrega você pelas calçadas molhadas da Paulicéia. Ele me deixa paralisado de espanto e fascínio. Roberto Piva é para ser lido de um só fôlego.

Ontem assisti a dois filmes do François Truffaut e, até então, não me dava conta da beleza singular de Catherine Deneuve. Diziam-me que sua beleza era glacial, mas depois de tê-la visto em "A Sereia do Mississipi", discordei totalmente dessa opinião. Perto de Catherine, Bardot não passa de uma pirralha.

desalumio




Sem saber exatamente como e, na falta de uma explicação mais clara, ela me confidenciou que havia atingido uma espécie de... anti-iluminação. Seja lá o que isso signifique, foi a única palavra que lhe ocorrera ao constatar, num de seus momentos de transe - quando fuma absorta entre turbilhões de palavras, frases desconexas vindas de todas as direções, numa tentativa desesperada de não perdê-las, de escrevê-las como uma forma de manter os pés bem firmes no chão - que seus desejos mais voluptuosos haviam se esgotado. Mesmo quando deparava-se com meninas bonitas na rua, estas não passavam de apenas-umas-meninas-bonitas-na-rua. Meninas com as costas nuas dançando sensualmente bem diante do seu nariz, eram simplesmente umas meninas bonitas e nada mais. Seus desejos haviam morrido, cessado, estagnado como uma lagoa em decomposição. Haviam desaparecido.
- Você acha que os desejos morrem assim? Simplesmente se apagam? Desaparecem de uma hora pra outra? Ou, vai ver, eles se transformam, se transferem, procuram um outro caminho, uma nova forma de ...expressão?
Ela pensava estar prestes a desvendar o destino deles quando, numa daquelas casas noturnas abarrotadas de caçadores ávidos e vítimas traiçoeiras, uma mulher, que mais parecia uma musa de filme noir, sussurrou-lhe ao ouvido:
- Linda, ela, não?, - indicando a garota de cabelos negros encostada à parede, os olhos brilhando como os de um gatinho inocente, aguardando para ser devorado.
- Sim, é perfeita - respondeu, visivelmente espantada com a abordagem.
- Vou ficar com ela - confidenciou-lhe a musa, um tanto embriagada, mas segura em sua decisão.
Ela lhe responde com um sorriso nervoso. Não havia nada a dizer.
- Você também a deseja? Encontrou mais alguém interessante na festa? O que você faz?
Não entendeu muito bem aquela última pergunta, se havia sido "o que você faz?" ou "como você faz?". Sentia-se como Chapeuzinho Vermelho acuada pelo Lobo, sob seu hálito quente e faminto.
Procurando simular uma certa indiferença - com doses de ingênua superioridade -, ainda trêmula, respondeu:
- Ora, eu escrevo... Sim, apenas escrevo - foi o que ela disse, sem muita convicção. E continuou a beber de um copo que lhe caíra nas mãos.
Algum tempo depois, quando pessoas e gestos foram se misturando até perdê-la de vista, é que pôde voltar a si. E finalmente percebeu que, quem havia estado bem diante dela, aquela mulher misteriosa e sedutora que parecia desafiá-la, era ninguém menos que o próprio Desejo.