09 décembre 2006

snakes

Cinderalla, de Junko Mizuno

O beijo traiçoeiro da serpente.
Petrifica o desejo. Esses são os erros, solitários e lentos,
Que matam, matam, matam.

Sylvia Plath, "Olmo"


Era uma vez uma menina que trabalhava num lugar estranho. Um lugar repleto de serpentes venenosas. Ela pareceria estranha trabalhando num lugar assim. Mas era vista como estranha nesse próprio lugar. Ela não tinha nada de diferente. As mesmas camisetas de bandas de rock, os mesmos all star verdes e encardidos, os mesmos jeans velhos e surrados. Por que pareceria estranha? Ela respirava literatura, música e cinema o tempo inteiro. Sua vida era movida a novas descobertas, mesmo que se tratassem de um livro antigo ou um disco de alguém que não se ouve mais. Ouvia Chico Buarque com Cat Power, Dresden Dolls com Cartola, Chopin com My Bloody Valentine. Ela trabalhava repetindo os mesmos gestos de sempre. E os pensamentos tão longe, povoados por músicas que pareciam surgir do nada, compondo a trilha sonora do seu estado emocional. Palavras, textos que lhe vinham, escapavam-lhe sempre que chegava perto de um pedaço de papel e uma caneta.

Ela não parecia ter muito apego à vida. Houve uma vez em que sofreu um sério acidente. Sua visão ficou turva, a temperatura despencou, ficou entre a vida e a morte. A caminho da emergência, sentindo uma dor insuportável, ela apenas imaginava o sofrimento pelo qual passaram todos aqueles camundongos. "Então era isso que eles sentiam", pensou. Ao seu redor, ela ainda enxergava uns rostos atônitos, bocas em "o". A equipe médica a irritava com tantas perguntas. Queriam saber o nome de algum parente, o telefone desses parentes. "Eu não tenho parentes! Façam parar essa dor, por favor!" Então ela não enxergou mais nada. Não viu flashback algum. Deve ser coisa de cinema. Voltou a si no dia seguinte, com tubos e soro num quarto repleto de doentes. Dezoito dias se passaram naquele quarto em que, de olhos fechados, imaginava as ruas do Bom Fim, ouvindo os sons da movimentada Oswaldo Aranha. A luz do sol eram apenas manchas pálidas nas paredes brancas. Médicos, médicos residentes, estudantes de Medicina, enfermeiras, estudantes de Enfermagem, psicólogos, estudantes de Psicologia, colegas, amigos, família. Até freiras. E padre, não vai ter? Lembrou de Rimbaud blasfemando, achou engraçado.

Num certo dia, entre os dezoito que lá passou, a levam, sobre a cama de rodinhas, através de um corredor com pouca iluminação. Agora ela está sobre uma mesa de cirurgia. Ela nunca tinha visto uma mesa de cirurgia. Ela não sabia que uma mesa de cirurgia assustasse tanto. A iluminação ofuscando os olhos aumenta a tensão. Ela recebe doses de anestesia como choques pelo braço e pescoço. "Se tudo isso pudesse ser apenas um longo pesadelo..." Ela acorda no outro dia, a mão esquerda enfaixada. "Se tudo isso não tivesse passado de um pesadelo..."

Hoje, ela ainda repete os mesmos gestos, no mesmo lugar estranho. Mesmo sabendo que, da próxima vez, não haverá mesa de cirurgia. Seu corpo não suportaria uma dose de veneno sequer. Reduziu sua imunibilidade. Mas o apego à vida, sim, ele está presente, porque seu coração bate diferente todos os dias. Por alguém que mora lá dentro e gravou palavras e sentimentos muito fundo, como uma tatuagem na alma. Assim, ela se arrisca todos os dias, mesmo querendo vivê-los todos, mesmo sabendo que este poderá ser o último, o único e inadiável dia. E como gostaria de poder compartilhá-lo com este alguém.

3 commentaires:

Mme. A. a dit…

Ninguém nunca realmente compartilha coisas com ninguém. Raramente as pessoas deixam qualquer coisa entrar em si mesmas, naquele lugar lá no fundo em que não existem máscaras e os dramas são reais.

Hoje mesmo eu estava comentando num blog de um amigo, que havia postado "Poema em Linha Reta", que, do meu ponto de vista, é uma das coisas mais perfeitas do mundo. E eu falei exatamente a respeito do que vomito aqui. Não existe gente de verdade no mundo, ninguém é sincero, ninguém é transparente. Minhas histórias são absorvidas por meus amigos, que depois recontam tudo em minha frente, dizendo que na verdade aconteceu com eles, ou com um amigo que conheceram na faculdade.

Acho que é este o problema que se tem quando se é de carne e osso e sonhos. Acaba-se vivendo gauche na vida e não tendo lugar ou alguém com quem conversar de verdade. Ainda que tenhamos amigos, amantes, família, fadas e amigos imaginários, ninguém consegue entrar no nosso âmago. Somos sozinhos sempre. Nascemos assim e morreremos assim, ímpares.

Nossa, como estou deprê hoje, que saco.

Sorry.

Mme. A. a dit…

Señor B.,

Os comentários são seus, vc pode fazer o que quiser com eles. Se quiser queimar, usar para alimentar peixes, mandar como cartões de Natal mórbidos, enfim, até mesmo como abano para dias de churrasco, pode, porque são seus e de mais ninguém.

São sempre verborrágicos porque simplesmente não consigo calar a boca. Quero dizer, hoje em dia passo a maioria do meu tempo quieta, só observando, como disse nos meus comentários (ou não. Ultimamente ando me confundindo com o que deixo como comentário para os amigos, o que escrevo em cartas, o que penso... Acho que estou ficando esquizofrênica. Acho que preciso de Fluoxetina. Ou Valium. Ou uma cerveja...). Já falei muito, ninguém nunca ouve, todos estão ocupados com seus umbigos e a necessidade que têm de parecer coisas maravilhosamente mágicas para mim. Ainda não entendi isso, ainda não entendi porque é que as pessoas que conheço realmente não perdem tempo em me ouvir. Será que realmente acham que me conhecem? Ou será que olham para mim e me acham uma mulher tão maravilhosa e fantástica que julgam que eu não tenho necessidades verborrágicas entre uma cerveja e outra? Não sabem que eu também tenho meus problemas existenciais?

No final falo mais de mim para quem dificilmente encontrarei pessoalmente do que para os que posso ver toda a semana. E não é por falta de vontade, é por falta de oportunidade e pelo perigo de cortarem minha língua fora se meu monólogo se prolongar por mais de 38.5 segundos.

Henry & June é lindo. O livro e o filme, são duas obras completamente diferentes. Não tem nem como comparar. Não tenho ainda em Português, quem sabe é um projeto para o futuro. Por enquanto tenho que me virar com apostilas de cursinho que já me dão pesadelos.

Não li grandes coisas do Graciliano Ramos. Voltei à Vidas Secas porque tenho que ler para a FUVEST, mas aprendi milhões de coisas com as palestras que tive lá no cursinho. Quero ler Memórias do Cárcere.

E também peguei a febre do Guimarães Rosa. Quem diria. Eu mesma nunca pensei que isto poderia acontecer comigo. Sou quase uma traidora dos meus próprios dogmas. Só não me considero porque as pessoas que não mudam suas certezas são as verdadeiras burras.

Aliás, já te mandei o prefácio do meu livro? Entalei aí, mas... dia 10 de Janeiro está chegando e a minha tortura vestibulárica chegará ao fim e poderei me dedicar ao meu livro-parto-qualquer-coisa-que-seja-ou-venha-a-ser.

Beijo.

Anonyme a dit…

entremear..tbm gosto dessa palavra possível.