01 mars 2006

Dédalo



[esse texto quis sair voando sozinho, ao som de Wandula – Merci, Dani, merci...]

...E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
sete vezes por dia, em sete dias
de sete vidas de ouro,
amor, fonte de eterno frio,
minha pena deserta, ao fim de março,
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.
[Drummond]

Ela sempre soube muito bem [ao menos era nisso que acreditava] dissimular sua solidão. Soterrada até o pescoço por livros e discos. Escrevendo, sobre a cama, suas ficções/confissões e cartas que jamais recebiam resposta alguma. O telefone que nunca toca. A companhia da mãe passiva em frente à tevê. Isto sim, a terrificava. Como pode alguém resumir a própria vida a filhos, cozinha e televisão? A vontade era de desistir, após repetitivas recusas, de convidá-la para um cinema, oferecer-lhe livros, cedês, beber um café na lancheria ali perto ou visitar o museu de artes. Não dou importância pra isso, minha filha. Como essa frase lhe doí. Agora, ela se vê em outra cidade, dentro de um apartamento temporária e inteiramente seu. Ouvir música de madrugada, ler, ver filmes, escrever no computador. Mas, e depois, e daí? Quem ocupará todos esses espaços vazios? Ela caminha pelo apartamento, acende um cigarro após o outro, liga e desliga a tevê, bebe água querendo afogar algo dentro de si [água é tão... Virginia Woolf]. Nenhuma música a preenche. Nenhum livro. Ela não consegue se concentrar. Ela perde o sono. A solidão, camuflada na casa de sua mãe, agora está bem diante de seu nariz. Ela a sente como um nervo exposto, encaram-se olho a olho, dente por dente. Ela se espanta com seu reflexo no espelho. Ela não consegue sair de casa. Ela nem conhece os vizinhos. De um texto que passou voando pelo seu pensamento [onde foi parar aquele caderninho quando mais precisava dele?], restou-lhe apenas uma palavra: dédalo. Ela procura no dicionário: cruzamento confuso de caminhos; encruzilhada, labirinto; coisa complicada ou obscura; confusão, emaranhamento... Dédalo era também o pai de Ícaro, ele construiu-lhes asas de cera para que fugissem do labirinto. Seu filho, no entanto, aproximou-se demais do sol. E o resto da história, todos sabem. Ela estende suas próprias asas, ainda molhadas. Feito um condor que, finalmente, se liberta do jardim zoológico. Seria capaz de voar depois de todos esses anos? Ela bate suas asas, mas não sai do lugar. Ela só sabe voar para dentro.

1 commentaire:

Gisalina a dit…

Troco todos esses argentinos bobos por ti. Saudade. Logo logo ela aprende a voar pra fora, é só redirecionar o olhar.