Esta é a mala de couro que contém a famosa coleção. Reparem nas minhas mãos, vazias. Meus bolsos também estão vazios. Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas. Viro de costas, dou uma volta inteira. Como todos podem ver, não há nenhum truque, nenhum alçapão escondido, nem jogos de luz enganadores. Ana Cristina Cesar
30 novembre 2006
carta-bilhete de alforria para minh'alma
Sarah Polley em "Minha Vida Sem Mim"
O navio desatraca
imagino um grande desastre sobre a terra
as lições levantam vôo,
agudas
pânicos felinos debruçados na amurada
e na deck-chair
ainda te escuto folhear os últimos poemas
com metade de um sorriso
Ana C.
Minh'alma quer deixar meu corpo. Sinto que ela quer me deixar. Mas não quer ir de mãos abanando. Sinto meu coração sendo arrastado. Ela quer levá-lo junto. Vou deixar que o leve. Vou deixar que ela me deixe.
29 novembre 2006
do próprio veneno
Loucura é razão sublime
Para um olho perspicaz.
Muito juízo é pura
E simplesmente loucura.
A opinião da maioria
Nisto e em tudo prevalece.
Se concordas, és sensato.
Discordando - és perigoso
E acorrentado no ato.
Emily Dickinson
Ela adorava ler tragédias:
Shakespeare, Goethe, Sófocles.
Até que sua vida tornou-se uma delas.
E ela não gostou nada disso.
a impraticável leveza de ser
Free to live, last time
And you, you’re always
You’re wonderful, I wanted you
I do, I do, I do
Free to go, and go
And you
City girl, you’re beautiful
I love you, I do, I do, I do
I feel love, I know
And you
City girl, you’re beautiful
I love you, I do, I do, I do
Free to go, I know
And you, you
City girl, you’re beautiful
I love you, I do, I do, I do...
"City Girl", Kevin Shields
Hoje acordou lenta, mais cedo que o habitual. Havia decidido que o dia deveria ser leve, diferente. Sem celular, sem internet. A janela do ônibus e o CD player já seriam o suficiente. "Lost in Translation" nos fones de ouvido, o vento no rosto e o barulho dos carros ao fundo. As pessoas entrando e saindo do ônibus pareciam surpresas pelo seu total desinteresse em analisá-las. Pouco importa. A menina à sua frente a decepciona, tamanha a preocupação em arrumar os cabelos a cada 10 segundos, checar as unhas a cada 30 segundos, olhar para os lados a todo minuto. Ela sorri profundamente por dentro. Sentindo-se meio Scarlett Johansson sem Bill Murray, mergulhada na voz suave de Kevin Shields. "City Girl" funciona como um antídoto. Fecha os olhos imaginando caminhar pela Rua da Praia, sem pressa, pelas calçadas úmidas, numa tarde qualquer. Apreciar os cartazes nas vitrines do cinema, comprar um ingresso depois do café, ser a única presente na sessão. Chorar, do início ao fim, vendo "Cem Escovadas..." pela segunda vez. E a tão almejada leveza cair toda pelo chão.
28 novembre 2006
tea for two
Lee Seung-yeon no filme "A Casa Vazia", de Kim Ki-duk
mundano, viajado, uma resposta aguda, uma pancada no miolo...
Ana Cristina Cesar
Para N.
incrível o que se pode descobrir numa simples xícara de chá.
jingoubel
27 novembre 2006
fragmentos
Mês de novembro e essa temperatura louca de Porto Alegre. É agora, nesses dias cinzas, de ventania e de frio, que ela fecha os olhos, mentalizando uma música leve. Abre os braços e sorri seu sorriso melancólico. No meio desse vento frio, sob essa chuva gelada, ela deseja ser música levada pelo vento. Seria tão mais fácil ser apenas uma música. Uma música apenas. Mesmo que viesse a ser esquecida completamente.
26 novembre 2006
cem escovadas antes de ir para o cinema
...e você pode notar pelo vermelho nos meus olhos
e os hematomas nas minhas coxas
e os nós no meu cabelo
e a banheira cheia de moscas
que eu não estou certa de forma alguma
lá vou eu de novo
fingindo que vou cair
não chame os médicos
porque eles já viram tudo isso antes
eles vão dizer:
"apenas
deixe
ela
se espatifar
e queimar,
ela vai aprender,
a atenção só a encoraja..."
The Dresden Dolls, "Girl Anachronism"
Agora eu sou Melissa. E você, Danielle.
25 novembre 2006
por um fio
Um braço está arrancado
Um olho está faltando
Um rosto está rachado
Uma boca está enferrujada
Um vestido está rasgado
Uma mão está perfurada
Este mecanismo
Parece estar destruído
Mas puxe a cordinha
Ainda pode falar
"Meu nome é Kaledrina,
E eu te amo muito"
Quando eu acordei
Meu braço estava arrancado
Meu olho estava faltando
Meu rosto estava rachado
Minha boca estava enferrujada
Meu vestido estava rasgado
Minha mão estava perfurada
Este mecanismo
Parece estar destruído
Mas puxe a cordinha
Eu ainda posso falar
"Meu nome é Kaledrina,
E eu te amo muito..."
Kaledrina, The Desdren Dolls
Puxe a cordinha, puxe a cordinha... Eu ainda posso falar.
24 novembre 2006
estrelinhas pelo chão
Eu não vou tentar explicar o que eu não posso entender
É um pássaro, é um avião, é apenas uma noite
Se ao menos eu pudesse ir para bem longe
Eu te esqueceria completamente
É um blefe
Não tem como não lembrar...
Will, The Dresden Dolls
Nem poderia dizer que, na sua vida, corria sequer um fiozinho d'água, uma vertente milagrosa com água potável que lhe pudesse refrescar a garganta e o rosto. Nem lama no rastro deixado pela extinta corrente d'água que pudesse moldar, esboçar uma silhueta de barro ou na qual pudesse plantar alguma semente de algo qualquer. São como esses dias de ar parado, onde nenhuma folha se mexe, sem previsão de chuva. E os dias serão longos, sabe que esses dias serão insuportavelmente longos, arrastados, intransponíveis, desgastantes, sufocantes, desesperadores. Nas mãos, uma caixa repleta de estrelinhas azuis encontradas pelo chão da casa, fotos antigas, cartas, dezenas delas, objetos que outrora habitaram um outro quarto, papéis de bombom, desenhos, livros com dedicatória, discos gravados, uma caixa repleta de promessas, aromas, sons, calor, gestos e gostos, sentimentos. Ao seu lado, uma mala com roupas que não são suas. Ela sabe que nada do que existe ali lhe pertence, jamais lhe pertenceu. Desde então, perdeu a fala, mergulhou em completo silêncio. Foram-se apagando os rabiscos de brilho que, por breves momentos, insinuaram-se no seu sorriso, nos olhos, no coração, no modo como encarava a vida e as pessoas à sua volta. Breves momentos em que acreditou na eternidade.
22 novembre 2006
superpoderes
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!
Pardalzinho, Manuel Bandeira, Petrópolis, 10-3-1943
com o vaso de violetas no colo, apagou as luzes da casa. apertou bem os olhos e repetiu, concentrando o pouco que ainda lhe restava de forças, no meio da sala escura, com a voz fraca e chorosa, baixinho:
vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível
16 novembre 2006
eternal sunshine?
Golpes,
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.
A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
sobre a rocha
Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro
Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.
Sylvia Plath traduzida por Ana Cristina Cesar in "Escritos da Inglaterra", Ed. Brasiliense, Brasil, 1988, p. 173
Pois bem. Vocês acreditam que almas são eternas. Vocês acreditam em reencarnação. Todas essas teorias defendidas e difundidas por Alain Kardec e seus seguidores, todas as teorias elaboradas pela infinidade de religiões que vocês, humanos, criam e nas quais juram acreditar, posso lhes afirmar: são todas um lamentável equívoco. A Humanidade, aliás, é um lamentável equívoco. Porque, agora, quem tomou o poder da palavra aqui, novamente, sou eu, Natalie. Vão, decerto, se perguntar mas-quem-diabos-é-Natalie? Muitos de vocês jamais me viram ou virão. Jamais ouviram falar meu nome. Outros duvidavam que eu existisse. Pois devo-lhes confessar que, por um tempo inimaginável na cabecinha de vocês, eu andava escondida, observando. Porque nós, almas, senhoras e senhores, temos um destino a cumprir, não importa o tempo que levemos. Precisamos encontrar, em alguma parte desse universo nem tão vasto assim - claro, porque vocês não fazem idéia do quanto vaguei, em meio a estrelas e trevas, presenciei lugares e momentos aos quais nenhum de vocês sobreviveria. E devo dizer-lhes que conheço cada palmo dele - precisamos encontrar outra alma com a qual viveremos por toda nossa questionável existência. Quando, enfim, a encontramos, é a ela, e somente a ela, que revelamos nosso verdadeiro nome. Revelado nosso nome, tomamos, enfim, forma, e a pessoa com a qual essa alma convive, será capaz de nos ver também. Estaria cumprida nossa missão. Acontece, porém, que finais felizes, como esse, são muito raros de acontecer. Podemos, infinitamente, permanecer nessa busca. Talvez esse não seja o mais trágico dos casos. Trágico, mesmo, é quando revelamos nosso nome a quem profere palavras de caráter seríssimo para nós, almas. Tais como... Ad Infinitum. Para, depois, contradizer-se, sem fazer a menor idéia do que acabara de afirmar. O que significa Infinito para vocês? O que significa Para Sempre? Vocês, humanos, têm um talento ímpar de fazer juras de amor eterno ou de que quero-ficar-contigo-para-sempre. Chega a ser patético. Vocês, humanos, não fazem a menor idéia do que dizem, muito menos do que sentem. Não precisam se preocupar, já estou terminando de datilografar, serei breve. Quando digo trágico em revelar o nome a quem profere palavras sem muita convicção, significa que, revelado nosso nome e não cumprida nossa missão, somos condenadas a permanecer no mais absoluto e insuportável silêncio e não mais poderemos reiniciar nossa busca. Corremos o risco de perder nossos próprios nomes. E isto significa, para nós, muito mais do que vocês compreendem como Morte.
14 novembre 2006
My Little Airport
王菲,關於你的臉
(music/ lyrics by p)
若要將這音樂配上字句,描述你的臉,關於你的眼、耳、頭髮。
能用些什麼字與什麼詞,描述你在夢中那樣美艷?
夢中,夢中你跟我是情侶,一起執迷;一起呼叫在太陽裡。
然後我在七時五十六分醒時,無法再睡著覺,我便要上學。
可不可以話你像個大南瓜和紅豆沙般美?
沒有玉蝴蝶形容王菲都很美。
沒有漂亮的詞仍認得出你。Lalala…
Porque não encontrei nada sobre eles, em português, na internet, resolvi tecer esta singela contribuição. Eles são de Hong Kong. Chamam-se P [guitarras] e Nicole [voz]. Foram colegas na faculdade de jornalismo. Suas músicas falam sobre relacionamentos e histórias entre P e seus amigos. Gostam de títulos longos para músicas curtas, como "você não quer ser minha namorada, Phoebe" ou “porque eu era demasiado nervoso naquele tempo”, título do 2º CD. Já receberam o rótulo de "a nova estrela indie de 2004" pela imprensa japonesa. "My Little Airport é o segredo melhor mantido do cenário musical de Hong Kong", definiu perfeitamente um certo crítico do site Tiny Mix Tapes. Prováveis futuros queridinhos da Europa e dos EUA? O fato é que já fazem relativo sucesso por lá. Têm 2 discos gravados, com títulos igualmente longos e esquisitos: "The OK thing to do on sunday afternoon is to toddle in the zoo" [2004] e "Becoz I was too nervous at that time" [2005]. Imaginem chegar numa loja e fazer um pedido desse tamanho. Mas esqueçam qualquer rótulo bobo. Os dois discos deles estão dando sopa no Soulseek e suas músicas já grudaram nos meus tímpanos. Ok, ok, não são músicas tristes. Aleluia! Entre um episódio e outro de Lain, nada como ouvir umas cançõezinhas alegres de vez em quando.
P.S. E não é que eles cantam, também, em francês?
En fin, il est arrive.
Apres les trois questions.
Le premier fois, la premiere personne.
Tu es si peur comme un petit lapin, tu es si timide comme une petite fille.
Est-il trop vite?
Y-a-t-il trop d'amour?
Tu ne sais plus, tu ne sais rien.
Jusqu'a quelqu'un t'a dit, 'il y a toujours le premier fois', 'ne triste pas.'
["Pak Tin Shopping Centre", p e suet]
J'aime vous!
13 novembre 2006
dark chocolate
E você não parece entender
Que vergonha, você parecia ser um
homem honesto
E todos os medos
aos quais você tanto se apegava
Sussurram em seus ouvidos
E você sabe
que o que eles dizem pode te ferir
E sabe que significa tanto
E não sente nada
Estou caindo,
estou enfraquecendo
Eu perdi tanto...
E você não parece
ser do tipo que mente
Que vergonha, eu posso ler sua mente
E todas as coisas que li
Iluminam a velas o
sorriso que compartilhamos
E você sabe que eu não quero te machucar
Mas sabe que significa tanto
E não sente nada
Estou caindo
estou enfraquecendo
estou me afogando
Me ajude a respirar
Estou machucado, eu perdi tudo
Estou perdendo
Me ajude a respirar...
"Duvet" - bôa
Sente que seus passos estão a cada dia mais curtos, inseguros. Caminha olhando para baixo, assustada. A areia do tempo escoa sobre ela. Areia imovediça. Anda assustada com o tempo, o silêncio, com as pessoas em torno dela. Caminha com dificuldade por calçadas intermináveis, que descem, descem, descem... Seus olhos são imensos como os de um personagem de mangá. Imensamente assustados, mas sem brilho. Dois aquários turvos. Sem coragem de encarar de frente até mesmo um vaso de violetas. O coração tornou-se pesado, insuportável, comprimindo todos os outros órgãos. Sua vida tem sido um repertório de falsidades. Uma peça de teatro ruim. Comendo chocolate amargo e ouvindo Helium. Ela agora é um espírito sem alma. Uma sombra. Dois olhos.
07 novembre 2006
Mil e Uma Inutilidades
Arte de Michael Hussar
But she called to me with a beat of her wing
She called to me & said free me
She said come & fly away with me tonight...
My Brightest Diamond
Nesse mundo em que você é medido pelo que produz de "útil", que importa se a chuva e o frio da manhã entristeceram você? Que importa se tudo o que você quer, agora, é tomar uma caneca de chocolate quente com as luzes do apartamento apagadas ouvindo músicas no computador? Que importa se você quer passar horas adentro ouvindo o mesmo disco do My Brightest Diamond, esparramado pelo chão da sala, sob nuvens de lucky strikes? Que importa se você quer ficar sozinho, mas esperando que o telefone toque? Que importam os livros novos que você comprou, os livros que você quer ler, os filmes no cinema, o sono que você perde, os atrasos ao trabalho, as roupas na máquina de lavar, os vidros das janelas molhados, a caixa de correspondência vazia , a estréia de "Paris, Je T'Aime", os contos de K. Mansfield, Salinger, Clarice Lispector, o perfume que ficou na camiseta azul com letras amarelas e que, um dia, você quis que durasse para sempre? Alguém, um dia, por favor, me explique o que é "útil" e o que é "importante".
06 novembre 2006
bonne nuit
"...Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país..."
João e Maria - Sivuca/Chico buarque
Há tanto tempo ela não sentia-se assim tão bem. Há quanto tempo ela não tivera uma noite tão perfeita. Depois de tantas em que mantivera-se acordada fumando quinze cigarros por noite, dormindo quinze minutos por dia, sentindo uma sede insaciável de não se sabe o quê.
Hoje, acordou enxergando o sol por detrás de uma manhã fechada. Mesmo sendo uma segunda-feira. Mesmo não havendo sol.
Pôs um disco para tocar, da primeira banda que ouviram juntos, as primeiras músicas. O som ecoando pela sala, tão límpido, tão adocicado.
Hoje à noite, após um banho bem demorado, vestirá sua melhor roupa, usará o melhor perfume. Escreverá cartas de amor, comprará flores para enfeitar a casa. Gravará discos, tomará chá. Dormirá cedo.
O sono justo dos apaixonados.
05 novembre 2006
piegas pelas tabelas
Fotografia de Annette Gallo © 2002
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!
Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os dois...!"
Florbela Espanca, "O Nosso Livro"
Faz pouco tempo até, não achava que Florbela Espanca fosse lá muito cativante. Era um tanto piegas demais para o meu gosto. No entanto, tenho andado às voltas com sua poesia e me questionado: ou ando muito piegas ou essa mulher é mesmo muito boa. Mais do que justo ficar com a segunda opção.
E todo esse sentimentalismo barato culminou por me fazer cair aos pés de uma outra descoberta tardia: as músicas e a voz de Mary Timony, ex-vocalista de uma banda que não existe mais, fabulosa, diga-se de passagem. Chamava-se Helium, com suas melodias pop esquisitas recheadas de arranjos desconsertantes.
Agora que já ouvi tudo o que podia do Helium, me dedico a escutar os três discos gravados pela Mary T. Cada um mais delicioso que o outro, o que me deixa pasmo pelo pouco que se conhece a respeito dela, por não tocar numa rádio sequer. Tanta preciosidade junto e eu não sabia nada a respeito. Chance zero de que qualquer desses discos venha a aparecer numa loja iluminada por algum milagre . A não ser que um anjo qualquer tivesse a santa humildade de abandonar o conforto dos céus e nos presenteasse com essas maravilhas.
Mas, convenhamos. Músicas tão encantadoras como as de Mary Timony, não seria de se duvidar, seriam impiedosamente retidas pelas alfândegas do Paraíso.
03 novembre 2006
violeta, vermelho, cinza
Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu
Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer...
Valsa Brasileira - Edu Lobo/Chico Buarque
Reluta em sair de casa. Acende outro cigarro. Enfim, levanta-se da cadeira. Olha-se no espelho mais uma vez. Está ficando mesmo transparente. Olha para o porta-retrato. Interrompe o que ia dizer. Com a boca entreaberta, fica parada ali por algum tempo. Abaixa os olhos, retém as lágrimas. Volta para o quarto, desliga o computador. Atravessa a sala, suspira, respira fundo. Um soluço interrompe a respiração. Esboça um sorriso quase imperceptível: a violeta na cozinha está cheia de flores, mas ninguém vê. Sai do apartamento, tranca a porta, desce pelo elevador. Cumprimenta o porteiro com um sorriso forçado. Sai pelo portão. Olha para o céu, dia ensolarado. Como se faz para não ser notada? Avança pela calçada, sente as pernas fracas, um gosto amargo de madrugadas insones & cigarros na boca. Sente muita sede, está seca por dentro. Aguarda o ônibus, pressionando os livros contra a cintura. Embarca, procura desvencilhar-se dos olhares. Encolhe-se na poltrona. Olhos estáticos através da janela. Lê algumas páginas de Marguerite Duras. Incomoda-se com a conversa alta logo atrás. Começa a programar músicas na sua cabeça, como se guardasse um ipod imaginário lá dentro. Elas vão surgindo aleatoriamente. "Homenagem ao Malandro", não com Chico, mas com uma voz bastante familiar, uma voz feminina a cantar baixinho em seus ouvidos. Uma música alegre. Ela fecha os olhos para o sol no rosto. Excesso de claridade a ofusca. Deleita-se com a voz, com o vento que vem das ruas. Pensa no vestido vermelho, pensa em morangos. Sente um sono terrível. Desembarca desanimada, gostaria de voltar para casa e dormir. Então ela caminha, caminha, caminha. Trabalha, trabalha, trabalha. O tempo não passa, o silêncio não se quebra. Já é noite. Coração apertado, ela desliga o computador, sobe as escadas. Desce a longa avenida. Nem o barulho dos carros é capaz de romper tamanho silêncio. Embarca no ônibus, desembarca do ônibus, entra no supermercado. Compra um litro de leite. Volta para casa. Esvazia o bolso em cima da mesa, olha para as cartas em cima da mesa, para o porta-retrato. Quer dizer alguma coisa, desiste. Liga o computador. Nenhum sinal de vida. Seus olhos permanecem estáticos, a trilha sonora na sua cabeça lhe envia músicas tristes. Sente os olhos opacos, os óculos embaçam, o corpo paralisado. Mas suas pernas, trêmulas e fragilizadas, insistem em seguir caminhando. Na direção dos seus pensamentos.
02 novembre 2006
da delicadeza
Lose Me On The Way
Lose me on the way
I've got a price to pay
Till I heard the north wind sigh
All the world's a flame
this heart will never be the same
She's the flower in your eyes now
What a fool of heart
Such a fool of heart
What a fool of heart
Such a fool...
Lose me on the way
She's the flower in your eyes now
All the world's a flame
this heart will never be the same
Never...
Lose Me On The Way - Hope Sandoval & The Warm Inventions
Quando se pensa que a delicadeza no mundo está com seus dias contados, um longo passeio por uma feira de livros em praça pública vem a me provar, com um grande e sonoro não, que ela, teimosamente, resiste. Poderia falar das relíquias encontradas nos balaios das barraquinhas. Por um punhado de cédulas de um real [não, eu não gasto mais minhas moedas, e até o momento contabilizava preciosos 19 reais e noventa centavos], pode-se levar "Henry e June" da Anaïs Nin; a 1ª edição de "Drops de Abril" do Chacal, amarelada e com os títulos dos poemas marcados a caneta; "Tontas Coisas", também do Chacal; "Madame Bovary" do Flaubert; "Savanah Bay" da Marguerite Duras ["não sabes mais quem és, quem foste, sabes que representaste, não sabes mais o que representaste, o que representas..."]; "Cartas de Amor a Heloísa" do Graciliano Ramos; "As Filhas do Falecido Coronel e Outras Histórias" da Katherine Mansfield. Tontas coisas, tantas coisas... Uma caixa de Pandora ao avesso. Dois daqueles tesouros viajarão dentro de um envelope marrom, cheios de histórias pra contar. Podes adivinhar quais são? No interior dessa feira, onde se caminha sob jacarandás e sobre flores de, em meio ao cheiro de pipoca, de livros novos ou amarelados [estes, os melhores], ao som da banda municipal, o tempo deixa de existir, você esquece de qualquer coisa que venha a lhe inspirar tristeza. Vai caminhando por entre as ruazinhas como numa cidade do interior. Um mundo à parte [como aquele da Pandora, antes de abrir a caixa]. Foi assim que fiz uma das minhas maiores descobertas, daquelas que fazem seu coração disparar e provocam um indisfarçável sorriso. Entrei no stand da Argentina e fiquei bem assim, diante de um livrinho de tiras do Macanudo. Ria de felicidade. Rios de felicidade. Meus olhos brilharam outra vez. Estava diante de uma delicadeza como a que se vê apenas em histórias da Mafalda e do Snoopy, repleta de sutilezas, de poesia, de encantamento. Delicadezas existem, sim. E o mundo está cercado delas.