31 décembre 2006

raio azul celeste



Encher estes espaços com os dias
No meu quarto, você pode ir ou ficar
Eu não consigo dormir, eu não consigo falar pra você
Agora estes anos travados em minha gaveta
Eu abrirei para ver, somente para ter certeza
Eu não consigo dormir, eu não consigo falar pra você
E assim eu estou quase alcançando unicamente
E então eu aprendi o significado do sol
E tudo isso é como uma mensagem que vem deslocar meu ponto de vista
Eu estou observando através da minha própria luz
Como ela colore a sua máscara
Segure meu vinho, segure ele aí
Ninguém está perdido, mas ninguém ganha...

Azure Ray, "Sleep"

We'll drink our tears and thirst for more
It's our lot in life
They are elephants we are mice
So keep this a secret
Keep this a secret
We are mice...

Azure Ray, "We Are Mice"


Pegue as músicas mais tristes que puder encontrar nos discos da Cat Power, junte com as melodias e vocais mais desoladores da Hope Sandoval e do Gentle Waves e você terá uma banda chamada Azure Ray. Na verdade, uma dupla - Maria Taylor e Orenda Fink são de Athens, Georgia [EUA] -, lançaram seu 1º disco - Azure Ray - em 2001 sem que muita gente percebesse. Em seguida, vieram Sleep EP [2002], Burn and Shiver [2002] - meu favorito -, November EP [2002], Hold On Love [2003], The Drinks We Drank Last Night [2003] e New Resolution [2004]. Para apreciadores do Moby [o que não é o meu caso], os vocais das meninas estão em "Great Escape" do CD 18. Elas também o acompanharam em algumas turnês.

Não espere uma só canção alegre por parte delas. É música para ser ouvida longe de qualquer objeto capaz de ameaçar sua vida. Se for ouvi-las diante da janela, tenha cuidado. Também não recomendo ouvi-las dentro do carro. De preferência, pare no acostamento. E o coração, muito cuidado com ele.

Quando alguém vier lhe dizer que Belle & Sebastian é triste demais, lembre-se de Azure Ray.

28 décembre 2006

estrelas marinhas


"Esta é a luz da razão, fria e planetária.
As árvores da razão são negras. A luz é azul."


Sylvia Plath

Sim, é preciso que a chame de Sra. Plath. Sylvia, certamente, haveria de provocar mal entendidos. A senhora deve muito bem saber o que é ter uma asa cortada, Sra. Plath. Não apenas uma ou duas vezes. Mas uma infinidade delas. A senhora já presenciou esta cena antes: vão até à cozinha, pegam uma faca - dessas usadas para desossar galinhas - na gaveta e, segurando firme sua asa, cortam-na de cima a baixo, sem hesitar. Ela sangra, as penas tingem-se de vermelho. Não é de se espantar, contudo, que ela volte a brotar, como braços de estrelas marinhas. Ela resiste. Teimosamente resiste. Como o amor que tanto defendemos, o amor pelo qual lutamos tão quixotescamente. Lembro de Joana D'Arc nessas horas, a única santa na qual insisto em acreditar. Ela não media esforços e foi perseverante até o fim, fiel àquilo em que acreditava, embora, para muitos, não houvesse passado de um delírio, de um fanatismo. Palavras secas e o destino é certo, Sra. Plath. São de uma precisão impressionante.

25 décembre 2006

dom de iludir-se



A primavera está no ar
Eles estão varrendo as ruas
O vento é uma brisa
O sol se transforma nele, ele concorda

O que mantém o rosto dele levantado?
Nada além dos céus azuis,
Corredores que levam às janelas
Que não se fecham

Onde você mora?
Amor é um lugar
De onde você é?
Ela diz, pergunte a você mesmo, pergunte a qualquer um

O que mantém o rosto dele levantado?
Nada além dos céus azuis,
Corredores que os olhos da mente
Contemplam...


Metric, "Love is a Place"


Procura ocupar-se das pequenas coisas como lavar louça e roupas, limpar a casa, brincar com a gata que lhe pede atenção. Gatos percebem quando sorrisos não são verdadeiros? Vê uma pilha de roupas sobre a tábua de passar, pilhas de livros interrompidos, anotações pela metade como montanhas intransponíveis. O peso do ar sem vento de uma tarde de Natal é diretamente proporcional ao peso do próprio coração, ao peso de um sonho que ela se esforça por erguê-lo sozinha. Sente o coração envenenar-se, tingir-se de cinza. Um dilaceramento por dentro como algo prestes a implodir. Cada palavra vaga é um empurrãozinho para que o castelo de cartas - que ela não recebe - desabe. Coleciona músicas obscuras e melancólicas no computador como brinquedinhos que finge acreditar pertencerem a ela apenas. Como se fosse a única, no mundo inteiro, a escutar The Decemberists, Architecture in Helsinki, Blonde Redhead, Metric. Ela sabe que não é verdade. Mas deixa-se iludir. Deixa que os outros a iludam. E ainda finge que acredita.

09 décembre 2006

snakes

Cinderalla, de Junko Mizuno

O beijo traiçoeiro da serpente.
Petrifica o desejo. Esses são os erros, solitários e lentos,
Que matam, matam, matam.

Sylvia Plath, "Olmo"


Era uma vez uma menina que trabalhava num lugar estranho. Um lugar repleto de serpentes venenosas. Ela pareceria estranha trabalhando num lugar assim. Mas era vista como estranha nesse próprio lugar. Ela não tinha nada de diferente. As mesmas camisetas de bandas de rock, os mesmos all star verdes e encardidos, os mesmos jeans velhos e surrados. Por que pareceria estranha? Ela respirava literatura, música e cinema o tempo inteiro. Sua vida era movida a novas descobertas, mesmo que se tratassem de um livro antigo ou um disco de alguém que não se ouve mais. Ouvia Chico Buarque com Cat Power, Dresden Dolls com Cartola, Chopin com My Bloody Valentine. Ela trabalhava repetindo os mesmos gestos de sempre. E os pensamentos tão longe, povoados por músicas que pareciam surgir do nada, compondo a trilha sonora do seu estado emocional. Palavras, textos que lhe vinham, escapavam-lhe sempre que chegava perto de um pedaço de papel e uma caneta.

Ela não parecia ter muito apego à vida. Houve uma vez em que sofreu um sério acidente. Sua visão ficou turva, a temperatura despencou, ficou entre a vida e a morte. A caminho da emergência, sentindo uma dor insuportável, ela apenas imaginava o sofrimento pelo qual passaram todos aqueles camundongos. "Então era isso que eles sentiam", pensou. Ao seu redor, ela ainda enxergava uns rostos atônitos, bocas em "o". A equipe médica a irritava com tantas perguntas. Queriam saber o nome de algum parente, o telefone desses parentes. "Eu não tenho parentes! Façam parar essa dor, por favor!" Então ela não enxergou mais nada. Não viu flashback algum. Deve ser coisa de cinema. Voltou a si no dia seguinte, com tubos e soro num quarto repleto de doentes. Dezoito dias se passaram naquele quarto em que, de olhos fechados, imaginava as ruas do Bom Fim, ouvindo os sons da movimentada Oswaldo Aranha. A luz do sol eram apenas manchas pálidas nas paredes brancas. Médicos, médicos residentes, estudantes de Medicina, enfermeiras, estudantes de Enfermagem, psicólogos, estudantes de Psicologia, colegas, amigos, família. Até freiras. E padre, não vai ter? Lembrou de Rimbaud blasfemando, achou engraçado.

Num certo dia, entre os dezoito que lá passou, a levam, sobre a cama de rodinhas, através de um corredor com pouca iluminação. Agora ela está sobre uma mesa de cirurgia. Ela nunca tinha visto uma mesa de cirurgia. Ela não sabia que uma mesa de cirurgia assustasse tanto. A iluminação ofuscando os olhos aumenta a tensão. Ela recebe doses de anestesia como choques pelo braço e pescoço. "Se tudo isso pudesse ser apenas um longo pesadelo..." Ela acorda no outro dia, a mão esquerda enfaixada. "Se tudo isso não tivesse passado de um pesadelo..."

Hoje, ela ainda repete os mesmos gestos, no mesmo lugar estranho. Mesmo sabendo que, da próxima vez, não haverá mesa de cirurgia. Seu corpo não suportaria uma dose de veneno sequer. Reduziu sua imunibilidade. Mas o apego à vida, sim, ele está presente, porque seu coração bate diferente todos os dias. Por alguém que mora lá dentro e gravou palavras e sentimentos muito fundo, como uma tatuagem na alma. Assim, ela se arrisca todos os dias, mesmo querendo vivê-los todos, mesmo sabendo que este poderá ser o último, o único e inadiável dia. E como gostaria de poder compartilhá-lo com este alguém.

07 décembre 2006

quando é noite de lua cheia



Se a lua sorrisse, teria a sua cara.
Você também deixa a mesma impressão
De algo lindo, mas aniquilante.
Ambos são peritos em roubar a luz alheia.
Nela, a boca aberta se lamenta ao mundo; a sua é sincera,

E na primeira chance faz tudo virar pedra.
Acordo num mausoléu; te vejo aqui,
Tamborilando na mesa de mármore, procurando cigarros,
Desconfiado como uma mulher, não tão nervoso assim,
E louco pra dizer algo irrespondível.

A lua, também, humilha seus súditos,
Mas de dia ela é ridícula.
Suas reclamações, por outro lado,
Pousam na caixa do correio com regularidade encantadora,
Brancas e limpas, expansivas como monóxido de carbono.

Nem um dia se passa sem notícias suas,
Vadiando pela África, talvez, mas pensando em mim.


Sylvia Plath, "Rival"


Não era um dia ensolarado como o de hoje. Estava nublado e fazia frio. Mas seu coração estava quente e agitado. Mãos suavam, pernas tremiam e ela a aguardava com ansiedade. Foi exatamente nessa data - também uma noite de lua cheia - que ela a beijou pela primeira vez. O primeiro café, o primeiro cigarro. As músicas mais perfeitas tocaram naquele café. Pareciam feitas sob encomenda. Foi quando ela a tocou pela primeira vez, encantou-se com seus olhos pequenos e tão próximos, brilhantes. A boca tão perto, as mãos. Os dois bombons que havia guardado exatamente para aquele dia, foram consumidos como hóstias numa comunhão. Trocaram alianças e cartas que, agora, seriam entregues pessoalmente. Pensava nisso agora, com o coração gelado de tanta cerveja, a alma nublada com tanto cigarro. Encolhe-se no sofá, ao abrigo da luz vermelha do abajur, das músicas que vêm do quarto e da lua, imensa na janela, cujo clarão torna as cortinas mais brancas, como fantasmas. Apenas a lua, sua única testemunha, seria capaz de compreendê-la.

05 décembre 2006

je pars en cendres



Je ne suis qu'une forme aux contours incertains
Avec un regard morne un tantinet hautain
J'avance à l'aveuglette et je suis mal luné
Une pièce sans fenêtre avec vue sur mes pieds

À force de malentendus je suis mal-entendant
Et ces déjà-vus me rendent malveillant
Je ne fume plus mais je pars en cendres
Combien de temps me faudra-t-il encore t'attendre

Je l'entends bien souvent le soir murmurer
Prendre á tèmoin le ciment des murs abîmés
Il leur promet du beau mais il se sent bien laid
En face de sa photo sur la table de chevet

À force de malentendus je suis mal-entendant
Et ces déjà-vus me rendent malveillant
Je ne fume plus mais je pars en cendres
Combien de temps me faudra-t-il encore t'attendre

Je ne fume plus mais je pars en cendres...

"En Cendres", Émilie Simon


Quando parece inútil falar português.

04 décembre 2006

piruetas

Émilie Simon

Sobreviver à mais longa noite,
Que se estende mais um dia
E nos leva a um sono profundo.
E nos leva à primeira aurora,
À primeira palavra.
O primeiro silêncio carrega palavras
Jamais escutadas.
Jamais...

Sobreviver à mais longa noite.
Imbuído no mundo e sentido por adiar
o que nunca mais consegue falar...

"Noturna", Wandula


Minh'alma volta a ensaiar seus primeiros vôos. Aquela asa que andava em inatividade, talvez por-falta-de-energia-em-nossos-transmissores, parece erguê-la novamente do chão. São vôos movidos por olhos brilhantes e sorrisos tímidos, mas contagiantes. Minh'alma não tapa mais os ouvidos nem grita. Ela escreve cartas, ouve Cat Power e Émilie Simon [sim, foi ela quem compôs a trilha de "A Marcha dos Pingüins"]. Ela voltou a ficar besta quando assiste às performances de Siouxsie & the Banshees, sua antiga paixão [isso por volta de 84]. Seus passos tornaram-se menos trêmulos e ela sonha quando dorme. Sente gostos e cheiros familiares. Ela voltou a ter bons presságios. Ela os lê quando os olhos, que tão incansavelmente busca, a enxergam outra vez.

désert


Oh, o meu amor, a minha alma gêmea
Eu conto os dias, conto as horas
Eu quero desenhá-lo num deserto
O deserto do meu coração

Oh, o meu amor, o teu tom de voz
Faz a minha felicidade a cada passo
Deixe-me desenhá-lo num deserto
O deserto do meu coração

Na noite, às vezes, parado à janela
Eu espero e naufrago
Num deserto, o meu deserto, aí está

Oh, o meu amor, o meu coração é pesado
Eu conto as horas, eu conto os dias
Eu quero desenhá-lo num deserto
O deserto do meu coração

Oh, o meu amor, passo à minha volta
Eu abandonei os arredores
Eu deixo-o, aí está, é tudo

Na noite, às vezes, parado à janela
Eu esperarei e naufrago
Lanço ao vento as minhas tristes cinzas, aí está...

Émilie Simon, "Désert"

02 décembre 2006

lentilhas

Não querida, não é preciso correr assim do que
vivemos. O espaço arde. O perigo de viver...

Ana C.


Em breve, chegará o Natal. E haverá essas luzinhas coloridas piscando, shoppings centers cheios, sacolas, filas no supermercado. E famílias que se amam somente na hora de trocar presentes. Haverá quem não receberá presentes nem terá família. Mesas fartas e vazias. Fogos, champagne, missa do galo. Haverá os mesmos crimes de sempre. Cadeiras com os lugares vagos. Algumas brigas e gente que se deprime. Gente nascendo e partindo. Lentilhas, nozes, uva-passa.

A personagem que, aleatoriamente aqui escreve, prefere, no fundo no fundo, um bom filme no cinema, longe desse burburinho. Porque, se existe uma coisa que ela não suporta, é um prato de lentillhas que, todo ano, insistem em lhe enfiar goela abaixo.

30 novembre 2006

carta-bilhete de alforria para minh'alma


Sarah Polley em "Minha Vida Sem Mim"

O navio desatraca
imagino um grande desastre sobre a terra
as lições levantam vôo,
agudas
pânicos felinos debruçados na amurada

e na deck-chair
ainda te escuto folhear os últimos poemas
com metade de um sorriso


Ana C.


Minh'alma quer deixar meu corpo. Sinto que ela quer me deixar. Mas não quer ir de mãos abanando. Sinto meu coração sendo arrastado. Ela quer levá-lo junto. Vou deixar que o leve. Vou deixar que ela me deixe.

29 novembre 2006

do próprio veneno

Ilustração de Adrian Tomine


Loucura é razão sublime
Para um olho perspicaz.
Muito juízo é pura
E simplesmente loucura.
A opinião da maioria
Nisto e em tudo prevalece.
Se concordas, és sensato.
Discordando - és perigoso
E acorrentado no ato.


Emily Dickinson


Ela adorava ler tragédias:
Shakespeare, Goethe, Sófocles.
Até que sua vida tornou-se uma delas.
E ela não gostou nada disso.

a impraticável leveza de ser

Scarlett Johansson in "Last in Translation", de Sophia Coppola


Free to live, last time
And you, you’re always
You’re wonderful, I wanted you
I do, I do, I do

Free to go, and go
And you
City girl, you’re beautiful
I love you, I do, I do, I do

I feel love, I know
And you
City girl, you’re beautiful
I love you, I do, I do, I do

Free to go, I know
And you, you
City girl, you’re beautiful
I love you, I do, I do, I do...


"City Girl", Kevin Shields


Hoje acordou lenta, mais cedo que o habitual. Havia decidido que o dia deveria ser leve, diferente. Sem celular, sem internet. A janela do ônibus e o CD player já seriam o suficiente. "Lost in Translation" nos fones de ouvido, o vento no rosto e o barulho dos carros ao fundo. As pessoas entrando e saindo do ônibus pareciam surpresas pelo seu total desinteresse em analisá-las. Pouco importa. A menina à sua frente a decepciona, tamanha a preocupação em arrumar os cabelos a cada 10 segundos, checar as unhas a cada 30 segundos, olhar para os lados a todo minuto. Ela sorri profundamente por dentro. Sentindo-se meio Scarlett Johansson sem Bill Murray, mergulhada na voz suave de Kevin Shields. "City Girl" funciona como um antídoto. Fecha os olhos imaginando caminhar pela Rua da Praia, sem pressa, pelas calçadas úmidas, numa tarde qualquer. Apreciar os cartazes nas vitrines do cinema, comprar um ingresso depois do café, ser a única presente na sessão. Chorar, do início ao fim, vendo "Cem Escovadas..." pela segunda vez. E a tão almejada leveza cair toda pelo chão.

28 novembre 2006

tea for two


Lee Seung-yeon no filme "A Casa Vazia", de Kim Ki-duk

O chá abria, mas eu queria uma quiromancia, um olho clínico,
mundano, viajado, uma resposta aguda, uma pancada no miolo...

Ana Cristina Cesar


Para N.

Ela lembra de uma música antiga da Rita Lee e se convence:
incrível o que se pode descobrir numa simples xícara de chá.

jingoubel

Gosto de ti, ó chuva, nos beirados,
Dizendo coisas que ninguém entende!

Florbela Espanca


Luzes de natal enfeitando as casas todas e ela nem vê necessidade disso;
o brilho das gotas de chuva sobre a vidraça da sala já fazem um efeito e tanto.

27 novembre 2006

fragmentos














Mês de novembro e essa temperatura louca de Porto Alegre. É agora, nesses dias cinzas, de ventania e de frio, que ela fecha os olhos, mentalizando uma música leve. Abre os braços e sorri seu sorriso melancólico. No meio desse vento frio, sob essa chuva gelada, ela deseja ser música levada pelo vento. Seria tão mais fácil ser apenas uma música. Uma música apenas. Mesmo que viesse a ser esquecida completamente.

26 novembre 2006

cem escovadas antes de ir para o cinema


...e você pode notar pelo vermelho nos meus olhos
e os hematomas nas minhas coxas
e os nós no meu cabelo
e a banheira cheia de moscas
que eu não estou certa de forma alguma
lá vou eu de novo
fingindo que vou cair
não chame os médicos
porque eles já viram tudo isso antes
eles vão dizer:
"apenas
deixe
ela
se espatifar
e queimar,
ela vai aprender,
a atenção só a encoraja..."


The Dresden Dolls, "Girl Anachronism"

Agora eu sou Melissa. E você, Danielle.

25 novembre 2006

por um fio



Um braço está arrancado
Um olho está faltando
Um rosto está rachado
Uma boca está enferrujada
Um vestido está rasgado
Uma mão está perfurada
Este mecanismo
Parece estar destruído

Mas puxe a cordinha
Ainda pode falar

"Meu nome é Kaledrina,
E eu te amo muito"

Quando eu acordei
Meu braço estava arrancado
Meu olho estava faltando
Meu rosto estava rachado
Minha boca estava enferrujada
Meu vestido estava rasgado
Minha mão estava perfurada
Este mecanismo
Parece estar destruído

Mas puxe a cordinha
Eu ainda posso falar

"Meu nome é Kaledrina,
E eu te amo muito..."

Kaledrina, The Desdren Dolls


Puxe a cordinha, puxe a cordinha... Eu ainda posso falar.

24 novembre 2006

estrelinhas pelo chão




Eu não vou tentar explicar o que eu não posso entender
É um pássaro, é um avião, é apenas uma noite
Se ao menos eu pudesse ir para bem longe
Eu te esqueceria completamente
É um blefe
Não tem como não lembrar...


Will, The Dresden Dolls


Nem poderia dizer que, na sua vida, corria sequer um fiozinho d'água, uma vertente milagrosa com água potável que lhe pudesse refrescar a garganta e o rosto. Nem lama no rastro deixado pela extinta corrente d'água que pudesse moldar, esboçar uma silhueta de barro ou na qual pudesse plantar alguma semente de algo qualquer.
São como esses dias de ar parado, onde nenhuma folha se mexe, sem previsão de chuva. E os dias serão longos, sabe que esses dias serão insuportavelmente longos, arrastados, intransponíveis, desgastantes, sufocantes, desesperadores. Nas mãos, uma caixa repleta de estrelinhas azuis encontradas pelo chão da casa, fotos antigas, cartas, dezenas delas, objetos que outrora habitaram um outro quarto, papéis de bombom, desenhos, livros com dedicatória, discos gravados, uma caixa repleta de promessas, aromas, sons, calor, gestos e gostos, sentimentos. Ao seu lado, uma mala com roupas que não são suas. Ela sabe que nada do que existe ali lhe pertence, jamais lhe pertenceu. Desde então, perdeu a fala, mergulhou em completo silêncio. Foram-se apagando os rabiscos de brilho que, por breves momentos, insinuaram-se no seu sorriso, nos olhos, no coração, no modo como encarava a vida e as pessoas à sua volta. Breves momentos em que acreditou na eternidade.

22 novembre 2006

superpoderes



O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!

Pardalzinho, Manuel Bandeira, Petrópolis, 10-3-1943



com o vaso de violetas no colo, apagou as luzes da casa. apertou bem os olhos e repetiu, concentrando o pouco que ainda lhe restava de forças, no meio da sala escura, com a voz fraca e chorosa, baixinho:

vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível vou me tornar invisível


16 novembre 2006

eternal sunshine?



Golpes,
De machado na madeira,
E os ecos!
Ecos que partem
A galope.

A seiva
Jorra como pranto, como
Água lutando
Para repor seu espelho
sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido pelas ervas.
Anos depois, na estrada,
Encontro

Essas palavras secas e sem rédeas,
Bater de cascos incansável.
Enquanto
Do fundo do poço, estrelas fixas
Decidem uma vida.

Sylvia Plath traduzida por Ana Cristina Cesar in "Escritos da Inglaterra", Ed. Brasiliense, Brasil, 1988, p. 173



Pois bem. Vocês acreditam que almas são eternas. Vocês acreditam em reencarnação. Todas essas teorias defendidas e difundidas por Alain Kardec e seus seguidores, todas as teorias elaboradas pela infinidade de religiões que vocês, humanos, criam e nas quais juram acreditar, posso lhes afirmar: são todas um lamentável equívoco. A Humanidade, aliás, é um lamentável equívoco. Porque, agora, quem tomou o poder da palavra aqui, novamente, sou eu, Natalie. Vão, decerto, se perguntar mas-quem-diabos-é-Natalie? Muitos de vocês jamais me viram ou virão. Jamais ouviram falar meu nome. Outros duvidavam que eu existisse. Pois devo-lhes confessar que, por um tempo inimaginável na cabecinha de vocês, eu andava escondida, observando. Porque nós, almas, senhoras e senhores, temos um destino a cumprir, não importa o tempo que levemos. Precisamos encontrar, em alguma parte desse universo nem tão vasto assim - claro, porque vocês não fazem idéia do quanto vaguei, em meio a estrelas e trevas, presenciei lugares e momentos aos quais nenhum de vocês sobreviveria. E devo dizer-lhes que conheço cada palmo dele - precisamos encontrar outra alma com a qual viveremos por toda nossa questionável existência. Quando, enfim, a encontramos, é a ela, e somente a ela, que revelamos nosso verdadeiro nome. Revelado nosso nome, tomamos, enfim, forma, e a pessoa com a qual essa alma convive, será capaz de nos ver também. Estaria cumprida nossa missão. Acontece, porém, que finais felizes, como esse, são muito raros de acontecer. Podemos, infinitamente, permanecer nessa busca. Talvez esse não seja o mais trágico dos casos. Trágico, mesmo, é quando revelamos nosso nome a quem profere palavras de caráter seríssimo para nós, almas. Tais como... Ad Infinitum. Para, depois, contradizer-se, sem fazer a menor idéia do que acabara de afirmar. O que significa Infinito para vocês? O que significa Para Sempre? Vocês, humanos, têm um talento ímpar de fazer juras de amor eterno ou de que quero-ficar-contigo-para-sempre. Chega a ser patético. Vocês, humanos, não fazem a menor idéia do que dizem, muito menos do que sentem. Não precisam se preocupar, já estou terminando de datilografar, serei breve. Quando digo trágico em revelar o nome a quem profere palavras sem muita convicção, significa que, revelado nosso nome e não cumprida nossa missão, somos condenadas a permanecer no mais absoluto e insuportável silêncio e não mais poderemos reiniciar nossa busca. Corremos o risco de perder nossos próprios nomes. E isto significa, para nós, muito mais do que vocês compreendem como Morte.

14 novembre 2006

My Little Airport



王菲,關於你的臉

(music/ lyrics by p)

若要將這音樂配上字句,描述你的臉,關於你的眼、耳、頭髮。
能用些什麼字與什麼詞,描述你在夢中那樣美艷?
夢中,夢中你跟我是情侶,一起執迷;一起呼叫在太陽裡。
然後我在七時五十六分醒時,無法再睡著覺,我便要上學。
可不可以話你像個大南瓜和紅豆沙般美?
沒有玉蝴蝶形容王菲都很美。
沒有漂亮的詞仍認得出你。Lalala…


Porque não encontrei nada sobre eles, em português, na internet, resolvi tecer esta singela contribuição. Eles são de Hong Kong. Chamam-se P [guitarras] e Nicole [voz]. Foram colegas na faculdade de jornalismo. Suas músicas falam sobre relacionamentos e histórias entre P e seus amigos. Gostam de títulos longos para músicas curtas, como "você não quer ser minha namorada, Phoebe" ou “porque eu era demasiado nervoso naquele tempo”, título do 2º CD. Já receberam o rótulo de "a nova estrela indie de 2004" pela imprensa japonesa. "My Little Airport é o segredo melhor mantido do cenário musical de Hong Kong", definiu perfeitamente um certo crítico do site Tiny Mix Tapes. Prováveis futuros queridinhos da Europa e dos EUA? O fato é que já fazem relativo sucesso por lá. Têm 2 discos gravados, com títulos igualmente longos e esquisitos: "The OK thing to do on sunday afternoon is to toddle in the zoo" [2004] e "Becoz I was too nervous at that time" [2005]. Imaginem chegar numa loja e fazer um pedido desse tamanho. Mas esqueçam qualquer rótulo bobo. Os dois discos deles estão dando sopa no Soulseek e suas músicas já grudaram nos meus tímpanos. Ok, ok, não são músicas tristes. Aleluia! Entre um episódio e outro de Lain, nada como ouvir umas cançõezinhas alegres de vez em quando.

P.S. E não é que eles cantam, também, em francês?

En fin, il est arrive.
Apres les trois questions.
Le premier fois, la premiere personne.
Tu es si peur comme un petit lapin, tu es si timide comme une petite fille.
Est-il trop vite?
Y-a-t-il trop d'amour?
Tu ne sais plus, tu ne sais rien.
Jusqu'a quelqu'un t'a dit, 'il y a toujours le premier fois', 'ne triste pas.'

["Pak Tin Shopping Centre", p e suet]

J'aime vous!

13 novembre 2006

dark chocolate



E você não parece entender
Que vergonha, você parecia ser um
homem honesto
E todos os medos
aos quais você tanto se apegava
Sussurram em seus ouvidos
E você sabe
que o que eles dizem pode te ferir
E sabe que significa tanto
E não sente nada

Estou caindo,
estou enfraquecendo
Eu perdi tanto...

E você não parece
ser do tipo que mente
Que vergonha, eu posso ler sua mente
E todas as coisas que li
Iluminam a velas o
sorriso que compartilhamos
E você sabe que eu não quero te machucar
Mas sabe que significa tanto
E não sente nada

Estou caindo
estou enfraquecendo
estou me afogando
Me ajude a respirar

Estou machucado, eu perdi tudo
Estou perdendo
Me ajude a respirar...

"Duvet" - bôa


Sente que seus passos estão a cada dia mais curtos, inseguros. Caminha olhando para baixo, assustada. A areia do tempo escoa sobre ela. Areia imovediça. Anda assustada com o tempo, o silêncio, com as pessoas em torno dela. Caminha com dificuldade por calçadas intermináveis, que descem, descem, descem... Seus olhos são imensos como os de um personagem de mangá. Imensamente assustados, mas sem brilho. Dois aquários turvos. Sem coragem de encarar de frente até mesmo um vaso de violetas. O coração tornou-se pesado, insuportável, comprimindo todos os outros órgãos. Sua vida tem sido um repertório de falsidades. Uma peça de teatro ruim. Comendo chocolate amargo e ouvindo Helium. Ela agora é um espírito sem alma. Uma sombra. Dois olhos.

07 novembre 2006

Mil e Uma Inutilidades













Arte de Michael Hussar

But she called to me with a beat of her wing
She called to me & said free me

She said come & fly away with me tonight...


My Brightest Diamond


Nesse mundo em que você é medido pelo que produz de "útil", que importa se a chuva e o frio da manhã entristeceram você? Que importa se tudo o que você quer, agora, é tomar uma caneca de chocolate quente com as luzes do apartamento apagadas ouvindo músicas no computador? Que importa se você quer passar horas adentro ouvindo o mesmo disco do My Brightest Diamond, esparramado pelo chão da sala, sob nuvens de lucky strikes? Que importa se você quer ficar sozinho, mas esperando que o telefone toque? Que importam os livros novos que você comprou, os livros que você quer ler, os filmes no cinema, o sono que você perde, os atrasos ao trabalho, as roupas na máquina de lavar, os vidros das janelas molhados, a caixa de correspondência vazia , a estréia de "Paris, Je T'Aime", os contos de K. Mansfield, Salinger, Clarice Lispector, o perfume que ficou na camiseta azul com letras amarelas e que, um dia, você quis que durasse para sempre? Alguém, um dia, por favor, me explique o que é "útil" e o que é "importante".

06 novembre 2006

bonne nuit


"...Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país..."

João e Maria - Sivuca/Chico buarque


Há tanto tempo ela não sentia-se assim tão bem. Há quanto tempo ela não tivera uma noite tão perfeita. Depois de tantas em que mantivera-se acordada fumando quinze cigarros por noite, dormindo quinze minutos por dia, sentindo uma sede insaciável de não se sabe o quê.

Hoje, acordou enxergando o sol por detrás de uma manhã fechada. Mesmo sendo uma segunda-feira. Mesmo não havendo sol.

Pôs um disco para tocar, da primeira banda que ouviram juntos, as primeiras músicas. O som ecoando pela sala, tão límpido, tão adocicado.

Hoje à noite, após um banho bem demorado, vestirá sua melhor roupa, usará o melhor perfume. Escreverá cartas de amor, comprará flores para enfeitar a casa. Gravará discos, tomará chá. Dormirá cedo.

O sono justo dos apaixonados.

05 novembre 2006

piegas pelas tabelas


Mary Timony - Matador Records
Fotografia de Annette Gallo © 2002

Livro de mais ninguém! Só meu! Só teu!
Num sorriso tu dizes e digo eu:
Versos só nossos mas que lindos sois!

Ah, meu Amor! Mas quanta, quanta gente
Dirá, fechando o livro docemente:
"Versos só nossos, só de nós os dois...!"

Florbela Espanca, "O Nosso Livro"


Faz pouco tempo até, não achava que Florbela Espanca fosse lá muito cativante. Era um tanto piegas demais para o meu gosto. No entanto, tenho andado às voltas com sua poesia e me questionado: ou ando muito piegas ou essa mulher é mesmo muito boa. Mais do que justo ficar com a segunda opção.

E todo esse sentimentalismo barato culminou por me fazer cair aos pés de uma outra descoberta tardia: as músicas e a voz de Mary Timony, ex-vocalista de uma banda que não existe mais, fabulosa, diga-se de passagem. Chamava-se Helium, com suas melodias pop esquisitas recheadas de arranjos desconsertantes.

Agora que já ouvi tudo o que podia do Helium, me dedico a escutar os três discos gravados pela Mary T. Cada um mais delicioso que o outro, o que me deixa pasmo pelo pouco que se conhece a respeito dela, por não tocar numa rádio sequer. Tanta preciosidade junto e eu não sabia nada a respeito. Chance zero de que qualquer desses discos venha a aparecer numa loja iluminada por algum milagre . A não ser que um anjo qualquer tivesse a santa humildade de abandonar o conforto dos céus e nos presenteasse com essas maravilhas.

Mas, convenhamos. Músicas tão encantadoras como as de Mary Timony, não seria de se duvidar, seriam impiedosamente retidas pelas alfândegas do Paraíso.

03 novembre 2006

- A senhora poderia me conseguir um copo d'água?

Quem nos deu asas para andar de rastros?
Quem nos deu olhos para ver os astros
- Sem nos dar braços para os alcançar?!...

Florbela Espanca

Água, água, muita água. Dizem que, nessas horas, é preciso que se beba muita água.
Ou sua alma atrofia...
Aplacar tanta sede? Só mesmo com um banho de chuva.

violeta, vermelho, cinza


Vivia a te buscar
Porque pensando em ti
Corria contra o tempo
Eu descartava os dias
Em que não te vi
Como de um filme
A ação que não valeu
Rodava as horas pra trás
Roubava um pouquinho
E ajeitava o meu caminho
Pra encostar no teu

Subia na montanha
Não como anda um corpo
Mas um sentimento
Eu surpreendia o sol
Antes do sol raiar
Saltava as noites
Sem me refazer
E pela porta de trás
Da casa vazia
Eu ingressaria
E te veria
Confusa por me ver
Chegando assim
Mil dias antes de te conhecer...

Valsa Brasileira - Edu Lobo/Chico Buarque


Reluta em sair de casa. Acende outro cigarro. Enfim, levanta-se da cadeira. Olha-se no espelho mais uma vez. Está ficando mesmo transparente. Olha para o porta-retrato. Interrompe o que ia dizer. Com a boca entreaberta, fica parada ali por algum tempo. Abaixa os olhos, retém as lágrimas. Volta para o quarto, desliga o computador. Atravessa a sala, suspira, respira fundo. Um soluço interrompe a respiração. Esboça um sorriso quase imperceptível: a violeta na cozinha está cheia de flores, mas ninguém vê. Sai do apartamento, tranca a porta, desce pelo elevador. Cumprimenta o porteiro com um sorriso forçado. Sai pelo portão. Olha para o céu, dia ensolarado. Como se faz para não ser notada? Avança pela calçada, sente as pernas fracas, um gosto amargo de madrugadas insones & cigarros na boca. Sente muita sede, está seca por dentro. Aguarda o ônibus, pressionando os livros contra a cintura. Embarca, procura desvencilhar-se dos olhares. Encolhe-se na poltrona. Olhos estáticos através da janela. Lê algumas páginas de Marguerite Duras. Incomoda-se com a conversa alta logo atrás. Começa a programar músicas na sua cabeça, como se guardasse um ipod imaginário lá dentro. Elas vão surgindo aleatoriamente. "Homenagem ao Malandro", não com Chico, mas com uma voz bastante familiar, uma voz feminina a cantar baixinho em seus ouvidos. Uma música alegre. Ela fecha os olhos para o sol no rosto. Excesso de claridade a ofusca. Deleita-se com a voz, com o vento que vem das ruas. Pensa no vestido vermelho, pensa em morangos. Sente um sono terrível. Desembarca desanimada, gostaria de voltar para casa e dormir. Então ela caminha, caminha, caminha. Trabalha, trabalha, trabalha. O tempo não passa, o silêncio não se quebra. Já é noite. Coração apertado, ela desliga o computador, sobe as escadas. Desce a longa avenida. Nem o barulho dos carros é capaz de romper tamanho silêncio. Embarca no ônibus, desembarca do ônibus, entra no supermercado. Compra um litro de leite. Volta para casa. Esvazia o bolso em cima da mesa, olha para as cartas em cima da mesa, para o porta-retrato. Quer dizer alguma coisa, desiste. Liga o computador. Nenhum sinal de vida. Seus olhos permanecem estáticos, a trilha sonora na sua cabeça lhe envia músicas tristes. Sente os olhos opacos, os óculos embaçam, o corpo paralisado. Mas suas pernas, trêmulas e fragilizadas, insistem em seguir caminhando. Na direção dos seus pensamentos.

02 novembre 2006

da delicadeza


Lose Me On The Way
Lose me on the way
I've got a price to pay
Till I heard the north wind sigh
All the world's a flame
this heart will never be the same
She's the flower in your eyes now

What a fool of heart
Such a fool of heart
What a fool of heart
Such a fool...

Lose me on the way
She's the flower in your eyes now
All the world's a flame
this heart will never be the same
Never...

Lose Me On The Way - Hope Sandoval & The Warm Inventions

Quando se pensa que a delicadeza no mundo está com seus dias contados, um longo passeio por uma feira de livros em praça pública vem a me provar, com um grande e sonoro não, que ela, teimosamente, resiste. Poderia falar das relíquias encontradas nos balaios das barraquinhas. Por um punhado de cédulas de um real [não, eu não gasto mais minhas moedas, e até o momento contabilizava preciosos 19 reais e noventa centavos], pode-se levar "Henry e June" da Anaïs Nin; a 1ª edição de "Drops de Abril" do Chacal, amarelada e com os títulos dos poemas marcados a caneta; "Tontas Coisas", também do Chacal; "Madame Bovary" do Flaubert; "Savanah Bay" da Marguerite Duras ["não sabes mais quem és, quem foste, sabes que representaste, não sabes mais o que representaste, o que representas..."]; "Cartas de Amor a Heloísa" do Graciliano Ramos; "As Filhas do Falecido Coronel e Outras Histórias" da Katherine Mansfield. Tontas coisas, tantas coisas... Uma caixa de Pandora ao avesso. Dois daqueles tesouros viajarão dentro de um envelope marrom, cheios de histórias pra contar. Podes adivinhar quais são? No interior dessa feira, onde se caminha sob jacarandás e sobre flores de, em meio ao cheiro de pipoca, de livros novos ou amarelados [estes, os melhores], ao som da banda municipal, o tempo deixa de existir, você esquece de qualquer coisa que venha a lhe inspirar tristeza. Vai caminhando por entre as ruazinhas como numa cidade do interior. Um mundo à parte [como aquele da Pandora, antes de abrir a caixa]. Foi assim que fiz uma das minhas maiores descobertas, daquelas que fazem seu coração disparar e provocam um indisfarçável sorriso. Entrei no stand da Argentina e fiquei bem assim, diante de um livrinho de tiras do Macanudo. Ria de felicidade. Rios de felicidade. Meus olhos brilharam outra vez. Estava diante de uma delicadeza como a que se vê apenas em histórias da Mafalda e do Snoopy, repleta de sutilezas, de poesia, de encantamento. Delicadezas existem, sim. E o mundo está cercado delas.

31 octobre 2006

brilho eterno no varal de lembranças



"... o meu pensamento tem a cor do seu vestido..."

Lô Borges


Quem passasse pela janela da sua cozinha, avistaria um vestido vermelho. Um vestido que tanto relutara em lavar. Perfume, amor, cheiro, gosto, momentos preciosos da sua vida seriam lavados e centrifugados numa máquina de lavar roupas. Por fim, ela tomou coragem. Não sem, antes, abraçar o vestido, conversar com o vestido, fazer-lhe juras de amor eterno. Tinha, em suas mãos, um vestido vermelho vazio. Era como seu corpo: sem alma, silencioso, à espera. Com pesar, ela coloca o vestido vermelho na máquina, acrescenta sabão em pó omo com amaciante comfort. Aperta o botão e se afasta, incapaz de presenciar uma cena como aquela. Havia um que de "Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças": doloroso, com requintes de crueldade. Sentia seu coração dar voltas impiedosas dentro da máquina, afogando-se. Senta-se diante do computador, prepara um fundo musical, um anestésico: CocoRosie, Giant Drag, Magic Numbers... quem seria capaz de amainar o seu sofrimento? Dúzias de cigarros e músicas depois, o silêncio. Silêncio na cozinha. Tarde da noite, ela retorna ao local do crime. Retira o vestido vermelho molhado, estende-o na parte mais nobre do varal: bem diante da janela da qual se avista o Guaíba sorvendo óstias de pôr-do-sol. Crime consumado, ela volta para o quarto. Sonha com vestidos vermelhos, sonhos com cheiro e gosto da dona daquele vestido. Acorda com a claridade do sol invadindo a sala. Vai para a cozinha fazer café e sorri. Diante dela, um vestido vermelho estendido no varal. Um vestido vermelho vivo perfumando a casa inteira. Quem passasse diante da janela da sua cozinha, veria, naquele vestido vermelho, um símbolo de persistência. De que seu amor resiste a tudo: ao tempo, à distância. E a máquinas de lavar roupas.

29 octobre 2006

entre papéis amassados e latas de nescau



Todos os dias passeava secamente na soleira do
quintal
À hora morta, pedra morta, agonia e as laranjas do
quintal
A vida ia entre o muro e as paredes de silêncio
E os cães que vigiavam o seu sono não dormiam
Viam sombras no ar, viam sombras no jardim
A lua morta, noite morta, ventania e um rosário sobre
o chão
E um incêndio amarelo e provisório consumia o coração
E começou a procurar pelas fogueiras lentamente
E o seu coração já não temia as chamas do inferno
E das trevas sem fim.

Haveria de chegar o amor.

Egberto Gismonti


Chega em casa e começa a esvaziar os bolsos. Em cima da mesa, larga as chaves, documentos, fichas de vale-transporte, cédulas amassadas, um celular surrado, um maço de marlboro light, o isqueiro, seus pedaços de papel com anotações e uma caneta. As moedas todas que lhe sobram, ela guarda numa lata vazia de nescau. Já perdeu a conta de quanto tem, mas acredita que, um dia, terá a quantidade necessária para comprar uma passagem até o amor de sua vida. Por esse motivo, em hipótese alguma, jamais gasta uma moeda sequer.

Ela sempre carrega pedaços de papel nos bolsos. Acredita que perderá seus pensamentos se não anotá-los, que lhe escaparão pela janela do ônibus, no chão das salas de cinema, sobre o balcão da padaria, entre um sono agitado e outro. Depois reescreve tudo no que ela batizou de caderno de desapontamentos [mais tarde, veio a descobrir que esse nome já existe, ficando ainda mais desapontada]. Ela se define como uma escritora que não escreve. Se considera uma escritora tão marginal que jamais publicará livro algum.

28 octobre 2006

Sobre anjos e outros grilos




Com um cigarro entre os dedos, ela se debruça sobre sua vida. Diante dela, centenas de camundongos brancos e inocentes, correndo perdidos por todos os lados. Mas seus olhos atravessam essa imagem. Olham para o nada. Pobres camundongos brancos, à mercê de uma ciência inútil. Mas ela pensava era em outra coisa. Pensava na sua mente paralisada. Seu corpo também está paralisado. Ontem, a caminho da parada de ônibus, percorrendo a longa avenida, percebeu que não sente seus pés pisando no chão. Ontem, lembrou-se do onteontem. Chico Buarque cantando em seus ouvidos numa ensolarada manhã de desenho animado, com borboletas laranja e joaninhas a pousarem em seu braço. Um sorriso estampava-se no rosto com uma doce voz a lhe sussurrar... com açucar, com afeto... Esse dia prenuncia coisas boas, pensou. A noite, no entanto, foi de pesadelos. Sonhava que seus sonhos desmoronavam. Que borboletas laranja e dias ensolarados não passavam de alucinação. Hoje, pensou no ontem. Sem Chico Buarque, sem direção, sem alma. Surdo-muda. Enfim, lembrou-se da noite de ontem e o sorriso esboçou-se novamente em seu rosto. As borboletas e joaninhas é que tinham razão. Agora ela vê anjos por toda parte.

24 octobre 2006

cabo de guerra


Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?

Cecília Meireles

Com um pé, ela caminhava. Do outro tiraram-lhe o chão. Agarrava-se com uma das mãos. A outra nada alcançou. Um olho insistia em brilhar. Do outro, roubaram-lhe a visão. Tem uma asa que voa. A outra quebrada, no chão. Qual é o lado mais forte?

Lição de Casa

São os trapos do coração
a escorrerem caminhos afora
trapos e tripas
vomitados em golpes escuros
sobre os tetos frios destas
noites
trapos e tripas
tripas e trapos
fitas e fitas
f a r r a p o s
(Diva Cunha)

Sentiu
as pernas fracas
a cara na lama
o sentimento de culpa
a alma distante
uma dor no peito
o coração apertado
uma falta de ar

Perdeu
o sorriso no rosto
o chão onde pisa
a alma distante
o sentido de direção

Passou
as noites em claro
escrevendo diários
pedindo perdão

22 octobre 2006

Cortina de Fumaça

Chan Marshall

As teclas pretas do meu teclado tornaram-se cinza, tamanha espera. Fumaça embaçando o monitor e o quarto. Embaça os olhos, os pulmões, o coração. Embaçam minhas retinas tontas e habitadas. Roubo palavras alheias e imagens que não são minhas, ladrão que rouba flores do jardim vizinho. Essa fumaça que me ronda tem mais cor que a minha invisibilidade. A invisibilidade da espera. À espera de uma rara e fortuita visita.

Fumo

Florbela Espanca

Longe de ti são ermos os caminhos.
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem
ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são outonos: choram... choram...
Há crisantemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho!
Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

21 octobre 2006

Correspondência para Macau

Macau, China


Reticências, reticências... é o ritmo dos dias, das horas que parecem andar para trás. Se fossem lesmas, ao menos deixariam rastros. Aqui há rastros. Não de lesmas. Há rastros da portuguesinha de Macau que passou uns dias por aqui. Há o cheiro dela pela sala, pelos livros e roupas, na cama, no travesseiro. Há fios de cabelo sobre o carpete, um vestido vermelho na cozinha, uma borboleta de óculos pousada na porta da geladeira. É com essa portuguesinha que ele deseja se casar. É essa portuguesinha que ele deseja e com quem quer viver e dividir todos os seus dias. Ele olha mais uma vez para a foto sobre o piano, para a cortina branca na janela da sala... e recomeça a escrever a carta, balbuciando em voz baixa, sorriso no canto da boca: "Ah, minha romântica senhora Tentação..."

Interlúdio

As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao teu lado.

Não me digas que há futuro
nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.

Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.

Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males
afunda, desarvorado.

Fico ao teu lado.


Cecília Meireles

19 octobre 2006

Ciranda Cirandinha



Um gosto amargo na boca, um coração no céu da boca. Cigarros e chocolate eram tudo que seu organismo debilitado suportava absorver. Há dias não sujava um único prato. Não via estrelas, não havia estrelas. Perdeu a lua de vista. Não havia músicas que a confortassem, uma única página, dentre os dezesseis livros, todos abandonados pela metade, que lhe dissesse: "respira fundo, sossega o coração...". Ela repetia, em voz baixa: "engole essa saudade... engole com muita água até que te tornes transparente, sem gosto e sem cor. Invisível. Incolor. Indolor". Água pela garganta, água até o pescoço, água até não mais. Sua infância, a dançar em torno dela, cantarolava cantigas de roda...
"o anel que tu me deste
era vidro e se quebrou
em pedrinhas, em pedrinhas de brilhante
para o meu, para o meu amor passar..."

resto de frase




Onde foram parar seus olhos experientes e intensos, Natalie?

17 octobre 2006

I Found a Reason



"... Como não repetirei, a teus pés, que o profissional esconde no
índice onomástico os ladrões de quem roubei versos de amor
com que te cerco.
Te cerco tanto que é impossível fazer blitz e flagrar
a ladroagem..." [Ana C.]

EU ENCONTREI UMA RAZÃO

Oh, eu acredito
Em todas as coisas que você diz
O que está por vir será melhor do que já foi antes
E você seria melhor
vindo vindo, vindo vindo pra mim
Melhor
vindo vindo, vindo vindo pra mim
Melhor
correndo correndo, correndo pra mim
Melhor vindo

Oh, eu acredito
Em todas as coisas que você diz
O que está por vir será melhor do que já foi antes
E você melhoraria vindo vindo, vindo vindo pra mim
Melhor
vindo vindo, vindo vindo pra mim
Melhor
correndo correndo, correndo pra mim
Melhor correndo...

I Found a Reason [Lou Reed]

29 septembre 2006

ponte aérea



















Os dois combinaram que não olhariam para trás após a despedida. Ela entrou na sala de embarque. Ele desceu a rampa do aeroporto, acendeu um cigarro amassado do bolso, em direção ao metrô. À noite, depois do trabalho, fez compras para o café da manhã. Comprou coisas das quais ela gosta. Só quando entrou no apartamento é que sentiu seu coração travar. Andou a esmo, tentando organizar cedês e livros, e punha-os de volta no mesmo lugar. Olhou para as roupas no varal, para as roupas sobre a tábua de passar roupas. Olhou para a foto no porta-retrato - uma foto dela -, para a mesa de café vazia. Espiou rapidamente a cama desarrumada. Pôs um cedê da Björk para tocar, o mesmo que ela havia escolhido na última noite deles. A última? Foi para a cozinha e olhou para a pia: duas xícaras, dois pires... o resto de nescau no fundo da xícara que ela usara. Seus olhos foram se turvando de lágrimas. Abriu a torneira, ensaboou a louça e, apoiando as mãos na beira da pia, chorou tanto e tanto e tanto... mais ainda que a torneira que ficou aberta... Ele ainda ouviu a risada de Natalie, sentada sobre a máquina de lavar roupas, segurando o vaso de violetas no colo. “Essa cena está parecendo com a desses filmes melosos”, ela disse. E riu muito dentro dos ouvidos dele. Nunca Björk lhe pareceu tão triste.

22 septembre 2006

DA ARTE DE MASTIGAR VIDRO










Cacos sobre as calçadas da Rua da República, cacos na xícara de café, na fumaça do cigarro, no banco do ônibus... cacos arranhando garganta e olhos, cacos que rasgam a garganta... cacos nas músicas do Gentle Waves, cacos sobre o carpete, cacos no lugar de estrelas de um céu sem nuvens nem lua, cacos no teclado do computador, no cheiro de sopa na cozinha, cacos sobre mesa e pratos, sobre a cama arrumada, cacos que respingam com a voz embargada, cacos que rasgam almas em pedacinhos.

28 juillet 2006

Natalie ou Retrato de Uma Alma Quando Jovem



Por detrás de cada pedra
Por detrás de cada homem
Por detrás de cada sombra
O vento traz-me o teu rosto

Roberto Piva

Tem vezes que ela é uma menina de doze anos chamada Mathilda caminhando a passos largos e apressados com um vaso de flores nas mãos como se fosse o coração de alguém muito amado.

Tem vezes que ela se chama Catherine e se perde em pensamentos, acuada num canto da sala escura sem querer ver ninguém, olhos arregalados para a Lua imensa na janela, a cara redonda da Lua querendo devorá-la inteira.

Tem vezes que ela é uma senhora que já viu quase tudo na vida, já criou e alimentou seus filhos e agora anda de avental e chinelos sozinha pela casa como a Senhora Glass, cigarros pelos bolsos, cabelos desalinhados, estendendo lençóis no varal, com cheiro de amaciante.

Mas por detrás de todos os nomes que ela inventa – e você não precisa querer adivinhar, haverá de sabê-lo, pelo seu semblante, o nome dela naquele dia – existe seu nome verdadeiro, é o nome pelo qual ela atende quando está... a-pai-xo-na-da. Ela mal suporta o peso do próprio e frágil coração, segura-o apreensiva entre as mãos sobre o colo (como se fosse o vaso de flores – hortências? tulipas?) com o solavanco do ônibus. Ai dela se ele voar pela janela afora e se estilhaçar estrondosamente no chão.

Ela não sabe precisar exatamente quando foi que suas pernas cambalearam assim pela última vez, a boca secou, a fome desapareceu e deixou de dormir apenas para ficar pensando naquele rosto. Ela se vê agora num amanhecer de centáureas, libélulas formigando (libélulas formigam, mesmo não sendo formigas) pelo seu estômago.

Ela não sente mais o peso da idade, porque almas são tão antigas, ela flutua outra vez como se fosse a menina de doze anos. Ela vê um sorriso iluminando a calçada com folhas amarelas dançando desgovernadas com o revoar de borboletas azuis. Ela vê o reflexo de seus olhos brilhando nos olhos que brilham refletidos nos olhos dela.

Ela agora atende novamente pelo seu verdadeiro nome. Você agora poderá chamá-la de Natalie.

26 juillet 2006

off board



almas
almas
como icebergs
como velas...

Roberto Piva

Eu jamais a tinha visto daquele jeito. Na verdade, eu nunca lhe dera muita atenção. Foi só quando iniciamos uma conversa aparentemente banal sobre condições do tempo e outras técnicas similares de lapidar o gelo, é que pude percebê-la melhor: estatura baixa, um tanto parecida com a Nathalie Portman. Ela observava-nos conversar, com olhos assustados, por detrás do meu ombro esquerdo. Queria que eu a apresentasse, que a incluíssemos também na conversa. Expliquei à outra pessoa que éramos muito parecidos, mesmos gostos para Literatura, Música, Cinema. Claro que havia situações em que ela queria ouvir Cat Power pela enésima vez, infernizando os vizinhos, enquanto flutuava pela casa, desorganizando todos os meus livros. Ao passo que eu preferia apreciar Jacqueline Du Pré da janela da sala, à procura de luas no céu, em total abandono. Mas, na maioria das vezes, nos entendíamos muito bem.

Então aconteceu o que era de se esperar. Ela caiu de encanto pela minha amiga. E eu passei a desconfiar que era recíproco. Por pura maldade, essa amiga decidiu esnobá-la: “Nós não teríamos a menor chance”. Imediatamente o sorriso apagou do seu rosto, e feito uma criança magoada, ela saiu de perto, acho que foi chorar escondida atrás da porta. Não havia nada que a convencesse a voltar. Queria ir embora de qualquer jeito. Dava pena de ver (foi quando lembrei da Mathilda em O Profissional, ela e aquele vasinho de flores, era de cortar o coração em tirinhas e preparar um strogonoff com ele). Minha amiga voltou atrás, encheu-a de elogios e seus olhos voltaram a brilhar por detrás das lágrimas, como raiozinhos de sol em gotas de chuva. Nos despedimos por fim. E a noite inteira, já em casa, ela em volta de mim, não tocava em outro assunto. Era só “quando vamos vê-la novamente? quando?”.

Pode parecer estranho, partindo de um sujeito ateu, mas essa pessoa de quem acabei de falar é a mesma que, quase todas as noites e madrugadas adentro, datilografa alucinadamente em sua Olivetti Lettera 82 verde quase tudo o que transcrevo para a tela do computador (ela abomina essas tecnologias). É ela a autora da maioria dos textos, devo confessar. Minha doce alma off board.

24 juillet 2006

Brigitte n'est pas Deneuve



O relógio se aproxima das duas da tarde e da noite para o dia o céu foi ficando cinza, o vento varrendo todos os ruídos do bairro Cristal. Lia em voz alta os poemas do Roberto Piva até que o cigarro apagasse, até o CD parar de tocar. Impossível ler Roberto Piva mentalmente. Ele rouba o ar que você respira. Ele carrega você pelas calçadas molhadas da Paulicéia. Ele me deixa paralisado de espanto e fascínio. Roberto Piva é para ser lido de um só fôlego.

Ontem assisti a dois filmes do François Truffaut e, até então, não me dava conta da beleza singular de Catherine Deneuve. Diziam-me que sua beleza era glacial, mas depois de tê-la visto em "A Sereia do Mississipi", discordei totalmente dessa opinião. Perto de Catherine, Bardot não passa de uma pirralha.

desalumio




Sem saber exatamente como e, na falta de uma explicação mais clara, ela me confidenciou que havia atingido uma espécie de... anti-iluminação. Seja lá o que isso signifique, foi a única palavra que lhe ocorrera ao constatar, num de seus momentos de transe - quando fuma absorta entre turbilhões de palavras, frases desconexas vindas de todas as direções, numa tentativa desesperada de não perdê-las, de escrevê-las como uma forma de manter os pés bem firmes no chão - que seus desejos mais voluptuosos haviam se esgotado. Mesmo quando deparava-se com meninas bonitas na rua, estas não passavam de apenas-umas-meninas-bonitas-na-rua. Meninas com as costas nuas dançando sensualmente bem diante do seu nariz, eram simplesmente umas meninas bonitas e nada mais. Seus desejos haviam morrido, cessado, estagnado como uma lagoa em decomposição. Haviam desaparecido.
- Você acha que os desejos morrem assim? Simplesmente se apagam? Desaparecem de uma hora pra outra? Ou, vai ver, eles se transformam, se transferem, procuram um outro caminho, uma nova forma de ...expressão?
Ela pensava estar prestes a desvendar o destino deles quando, numa daquelas casas noturnas abarrotadas de caçadores ávidos e vítimas traiçoeiras, uma mulher, que mais parecia uma musa de filme noir, sussurrou-lhe ao ouvido:
- Linda, ela, não?, - indicando a garota de cabelos negros encostada à parede, os olhos brilhando como os de um gatinho inocente, aguardando para ser devorado.
- Sim, é perfeita - respondeu, visivelmente espantada com a abordagem.
- Vou ficar com ela - confidenciou-lhe a musa, um tanto embriagada, mas segura em sua decisão.
Ela lhe responde com um sorriso nervoso. Não havia nada a dizer.
- Você também a deseja? Encontrou mais alguém interessante na festa? O que você faz?
Não entendeu muito bem aquela última pergunta, se havia sido "o que você faz?" ou "como você faz?". Sentia-se como Chapeuzinho Vermelho acuada pelo Lobo, sob seu hálito quente e faminto.
Procurando simular uma certa indiferença - com doses de ingênua superioridade -, ainda trêmula, respondeu:
- Ora, eu escrevo... Sim, apenas escrevo - foi o que ela disse, sem muita convicção. E continuou a beber de um copo que lhe caíra nas mãos.
Algum tempo depois, quando pessoas e gestos foram se misturando até perdê-la de vista, é que pôde voltar a si. E finalmente percebeu que, quem havia estado bem diante dela, aquela mulher misteriosa e sedutora que parecia desafiá-la, era ninguém menos que o próprio Desejo.

13 juin 2006

quem ousaria calar Sylvia Plath?



Raramente acendo a luz da sala. Talvez por não querer me expor a mim mesmo. A Sra. Claridade grita que, bem, aqui estou, vivendo nesse apartamento, e que eu preciso, de alguma forma, dar um jeito na minha vida. É como deparar-se com seu reflexo diante do espelho na crua luz da manhã. “Vai ser gauche na vida!”, diz o espelho... Por que escrevo todas essas bobagens? Porque só decidi descer o elevador e buscar uma encomenda na portaria do prédio quando já passava das nove da noite de um sábado completamente encoberto.

Há coisas que chegam pelo correio (descontando, é claro, contas e propagandas) com um sabor tão especial que eu não teria competência suficiente pra descrever. Mas o que era, afinal, essa encomenda? Posso lhes assegurar tratar-se de algo sagrado, excitante, belo, comovente, um tesouro precioso e que se chama... livro! E do que trata esse livro para ser assim ”tão” valioso? Ora, ele fala (livros falam, é claro) a respeito de alguém que, se não transformou inteiramente a minha vida, mostrou o quanto esta pode ser profunda e, paradoxalmente, amarga e bela. Essa pessoa de quem fala o livro (eles falam! podem acreditar) me amparou em tantos tropeços, nos períodos mais sombrios dos quais você acha que nunca mais voltará. Essa pessoa que me faz estremecer, que me faz acreditar “que alguma coisa... divina aconteça”, essa pessoa chama-se Sylvia Plath.

O livro veio de longe (na verdade nem tão longe assim, mas antigamente poderia ser que levasse muitos dias para chegar), de um lugar chamado Coisa Antiga e que fica numa cidade que eu nem conhecia, chamada Pilar do Sul, em São Paulo. O envelope, acreditem, endereçado a mão. O livro, motivo de todo esse estardalhaço (cinco dias esperando uma carta registrada), chama-se “A Mulher Calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia”, sensivelmente escrito por Janet Malcolm.

Foi esse o motivo que me fez acender a luz da sala, me recostar aos pés da poltrona, escolher um disco de Jacqueline du Pré e, a ponto de quase perder o fôlego, abrir suas primeiras páginas. Sylvia é essa claridade que me me faz enxergar o que eu não teria coragem de ver sozinho. A minha própria cara na frente do espelho.

stereoplastificada



Sentada no chão da sala, de pijamas, ela fuma um cigarro atrás do outro. É um domingo, três da tarde no celular. Timidamente, ela espia, por entre as cortinas – olhos cheios de sono –, o dia azul & cinza lá fora (dentro dela, apenas cinza), como se fosse uma festa da qual não tivesse muita vontade de participar. “Por que me sinto paralisada, plastificada de medo?”- Parece uma louca falando sozinha, ouvindo Stereoplasticos sem parar.

Ainda não acordou direito. Para ela, a manhã está apenas começando, seu relógio biológico diz que ainda é cedo. Em voz alta, ela pensa: “acorda, vai limpar logo essa sujeira! Pega mal se alguém te ver agora e te encontrar assim, com todos esses pedaços de coração espalhados pela casa”. Então, ela vai até o quarto, buscar o aspirador. Não sem antes acender outro cigarro e ouvir “Lonas Bicolores” mais uma vez.

10 juin 2006

joguinho de esconde-esconde



"...então jogo as palavras para cima
e o que cair no papel talvez diga o que quero.
Ou talvez não. Mas se não disser, aí tenho sempre uma desculpa
para tentar de novo."
Mme. Archenar

Ela chega bêbada ao apartamento, após a quinta tentativa de abrir a porta (“malditas chaves doberman...”) no escuro do corredor. Botou Angela Ro Ro para tocar e, com um copo imaginário na mão, põs-se em frente ao espelho, maquiagem borrada por lágrimas, suor e chuva de outono. Mais se assemelhava a um rascunho de desenho a carvão :

“O seu mal, Epiphany, é que você fuma demais, bebe demais, sente demais, idealiza demais. O amor? Oh, sim, o amor. Nada mais é do que uma série de reaçõezinhas químicas em maior ou menor escala. O ser humano é químico, é físico, um animalzinho com mania de grandeza. Olhe para você mesma, Epiphany, uma escritora que não publica, uma cineasta que não dirige. O que você sente é um peso para os demais, um estorvo. Você sonha com os louros do reconhecimento sem haver realizado porra alguma. Agora, eis você aí, procurando ocultar os vestígios de um amor que nunca existiu. Esconde as camisetas dela numa gaveta, o perfume dela, a escova de dentes dela, o outro travesseiro. Mas onde você esconderá o que sente por dentro?”

Ela deixa-se cair sobre a cama desarrumada há dias. A cama, aliás, pode ser um retrato revelador do nosso estado psicológico. Você já analisou a sua? Então, ela sente que algo começa a fazer-lhe cócegas no rosto. Acende a luz do abajur e depara-se com um fio de cabelo que, definitivamente, não é o seu. Um longo e fino fio de cabelo ruivo a lhe sussurrar nos ouvidos:
"isso que você sente aí dentro, menina, não se esconde em gavetas”.

08 juin 2006

sim, ela não...


Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo

Mas hoje eu pus fogo na cama
e a fumaça está enchendo o quarto,
está ficando tão quente que as paredes estão derretendo,
e a geladeira, um dente branco se desmanchando.

Anne Sexton


Ela mora numa cidade onde sentir saudades é crime. Assim, ela vive escondida num apartamento emprestado, assistindo a videoclipes na MTV a madrugada inteira, como se tomasse um porre semelhante ao da personagem de “Live with me” do Massive Attack. Quando vê Pixies, pensa consigo mesma: “jamais haverá uma banda como essa...”. Mas muda logo de opinião quando vê “Head On” com Jesus & Mary Chain. Oh, sim, seus olhos brilham diante da televisão, contemplando os cabelos sobre os olhos de Jim & William Reid, suas guitarras distorcidas, suas roupas pretas & vozes aveludadas. “Oh, yea, eles cantam pra mim!”. Os cigarros se consomem rapidamente, abarrotando o cinzeiro como corpos abandonados numa vala comum. Ela dorme no sofá assistindo a “Sugar Kane” do Sonic Youth. Se arrasta até a cama. Acorda à uma da tarde. Recebe duas chamadas por engano. Recebe uma mensagem, outro engano. Sim, ela não apareceu. O maior dos enganos. Ela sente sua falta. Pensa nos pés dela. No gosto que tem sua pele. Sente seu perfume pelo apartamento. Ouve Los Hermanos para se torturar. Ouve Björk. Escreve uma linha a máquina, uma carta que não sai do lugar. Nada sai do lugar (outro engano?).

Havia sangue na pia da cozinha. Demorou a reconhecer o próprio sangue. Esquece muitas vezes que, o que nos move, é esse líquido quente e vermelho (não tão doce quanto mel...). Ela acha que seu sangue é ralo, uma gasolina adulterada. Limpa a geladeira minuciosamente, cada prateleira, cada gaveta. Ao final, o que tem diante de si, é um corpo limpo, frio e vazio, um cadáver que foi dissecado. Ela sente-se como uma geladeira vazia. Um corpo limpo e frio, consumindo-se rapidamente.

Às putas que a literatura pariu




- À puta que pariu a literatura! Quero ver esses escritorezinhos de merda destruindo tudo ao redor. Não essas frases todas no lugar certo como se postas à mesa de um restaurante caro. Quero a gana do Arcade Fire, esse desespero pela poesia. Não às palavras vãs, ao falar só por falar. Quero a poesia sangrando! Cadê a alma que os cristãos pregam? Pregar. Nisto eles são mestres. Pregam seus próprios mártires. Você não está entendendo o que estou tentando dizer, não é? Eu também. Não é mesmo para entender. É que esse marasmo literário me irrita. Festas literárias em Paraty onde apresentadores de televisão descem de helicóptero. Muita pose para pouca escrita. Deve ser por isso que o Raduan não escreve mais, foi cuidar de coelhos. Se é para publicar na revista Cláudia, melhor é criar galinhas. Elas que, aliás, foram fonte de inspiração à Clarice e ao Caio.

- Eu entendo. Entendo perfeitamente o que você quer dizer. Compreendo bem toda sua indignação. Mas precisava ficar nesse estado por causa de um videoclipe do Arcade Fire?

- Oh, meu bem... desculpa... Acho que... havia algo de estranho nesse chá de camomila. Prova...

- Esquece, esquece. Não foi nada. Vem, amor, vamos dormir.

17 avril 2006

um sopro









“Minha amiga deve ser um pássaro,
Porque voa!
Minha amiga deve ser imortal,
Porquanto morre!
Tem farpas qual abelha.
Ah, singular amiga,
Tu me intrigas!”


Emily Dickinson

Algo como uma fumaça... quase imperceptível. Dessas que o vento leva até desaparecer. Uma fumaça de cigarro com seus veneninhos. Acho melhor assim.